Como sambar um tango

[Texto feito especialmente para o antigo blog do Luiz Horta, que agora firmou endereço no glupt.com.br]

“Quando as coisas estiverem péssimas, não faça em ritmo de tango; faça em ritmo de samba, que é melhor”. Crescemos com esse mantra familiar, frase preferida de um pai que detestava auto-piedade. Aqui, não se conta desvantagem, não há tragédias, não se valoriza o ruim. Vem a chateação, a gente bate no peito e chuta. Mas… convém não exagerar.

Minha mãe, agora com 85 anos, sempre viajou muitíssimo a trabalho ou lazer, daí o grande abacaxi de ter tido um “AVCzinho”, como diz (sambando).

Há três anos muito limitada e cadeirante, mas com sua habitual vontade de ferro, faz campanha diária por uma viagem ao exterior. Minha irmã, passista de primeira, insistiu que tudo daria certo, claro! Bastava levar duas enfermeiras, a cadeira de rodas, malas extras, remédios, improvisar a fonoaudiologia e fisioterapia obrigatórias, quarto adaptado, além da alimentação especial.

Já que era Natal, rimamos com “o escambau” e juntamos genros, netos, uma sogra, miramos no “exterior” mais próximo e partimos para Buenos Aires. A ideia era ter um hotel que resolvesse metade da aflição e simular férias da sua rotina limitada fazendo tudo igual, só que em espanhol.

Chegamos. Já na recepção, minha mãe diz: ‘que saudade do meu apartamento!’, meus filhos correm para o primeiro cômodo com senha de wi-fi, e as enfermeiras fazem a lista da farmácia. Eu só queria beber.

Se você mora no Instagram, este não é seu post. Lá, ninguém tem piriri, come mal em viagens ou tem mãe nessa situação. Foram 6 dias de reservas e expectativas furadas, num hotel apelidado de “nave-mãe”. Com sorte, escapávamos esporadicamente da órbita, em busca de pequenas alegrias.

Tentei matar saudades da LAB TOSTADORES DE CAFÉ, cafeteria preferida pelo conjunto da obra, mas dei com a cara na porta, fechada para reformas. São eles que torram os grãos de uma outra casa, a FÉLIX FELICIS, em Palermo, dona do melhor flat white de Buenos Aires, dá desconto para quem chega de bicicleta e vende um guanes (tipo de grão) colombiano exclusivo, que provei também no V-60, meu método de extração preferido.

Fugia aqui e ali para garantir suprimentos, nos dias em que a matriarca estava indisposta. Assim descobri o PASTRÓN, pastrami argentino feito com a capa do bife (a ‘tapa de asado’), que fica em salmoura por 30 dias com especiarias e pitada de açúcar e depois é cozido por 6 horas em baixa temperatura, de preferência no forno a lenha. Também provei o excelente REGGIANITO, filhote do parmiggiano reggiano e feito em rodas menores (de 6,8kg), um pouco mais salgado e envelhecido apenas por 6 a 8 meses. Pequenos regalos.

Nada disso funciona sem pães, e alguns dos melhores se acha na SELVAGE, padaria dentro de uma garagem de Palermo. Nas paredes, fotos de Pink Floyd, Kurt Cobain, Foo Fighters e tal. No salão, um entra e sai de gente atrás dos pães de fermentação natural que fizeram a fama da casa, e eu, na fila do pan dulce (panetone) feito com massa madre antiga e passas maceradas no ótimo vermute LA FUERZA, produzido nos Andes. Algo delicioso e original, se tiver sorte de passar pela cidade no Natal.

Outro pequeno prazer foi visitar, no vazio do feriado, o Centro antigo da cidade, acinzentado, silencioso e bonito, de um jeito melancólico. De repente, um oásis: a sorveteria CADORE, única loja aberta. É corredor sóbrio, simples e sem adornos, com seus tambores de metal alinhados, merecido patrimônio cultural da cidade por sua qualidade. Mesmo não sendo fã de doces muito doces, é impossível evitar o sabor icônico feito do mesmo jeito desde 1957. Leite, açúcar e baunilha cozidos por 14 horas fazem a base perfeita do bloco denso de doce de leite gelado. Rimei com uma bola de pistache e fiz uma pequena prece pelo milagre de Natal.

O grupo de onze também foi salvo duas vezes pelo SOTTOVOCE, um italiano gostoso de bairro, nada hipster, que acomoda sem cara feia grupos grandes, onde comi (e repeti) um excelente mellanzane alla parmiggiana.

Não poderíamos passar sem uma ceia, e escolhemos a da nova casa de carnes do Hotel Alvear, com menu em torno do tema – bife ancho, cordeiro, pato – em ponto perfeito. O hotel também acaba de ganhar rooftop simpático, que encontramos fechado duas vezes por conta da chuva, nesses dias de Instagram reverso.

Adorei a CASA CAVIA, linda construção palaciana de 1927, reformada pela KallosTurim, arquitetura e design. Lá dentro, florista, loja de perfumes, livraria de charme e um lindo pátio central, onde faria questão de ficar em dias frescos, mas estava quente como o inferno. A cozinha é despretensiosa (tudo era empanado e bem frito, como minha mãe gosta, fossem molejas, peixes ou polvo) mas é lindo, divertido e funciona naquele todo adorável, com ótimo serviço e carta com ótimas descobertas, como os vinhos da Bodega Chacra.

Minha refeição preferida foi no ELENA, novo restaurante do hotel Four Seasons. A começar pelo serviço da sommelière Dulce Long, o mais elegante da cidade. Comi salada de abóbora assada com suas sementes e queijo halloumi, deliciosa e bem temperada, seguida de umas costeletas de porco com barbecue, de matar. Tudo perfeitamente executado, que é o que interessa, sem firulas e bem apresentado.

Assim sambamos La Cumparsita, buscando felicidade enquanto tudo dava errado. A viagem de volta foi um inferno com subsolo. Havia uma multidão no aeroporto, filas intermináveis, horas e horas numa cadeira de rodas que tinha um problema no assento, e tudo isso regado pelo habitual medo de avião de minha mãe. Em um dado momento, chegou a ficar lívida e perdeu os sentidos de exaustão. Jurei não repetir.

Já em casa, peguei em suas mãos para ter uma conversa em tom grave:

  • “Mamãe, veja que odisseia terrível e sacrificante. Acho que agora temos certeza de que, infelizmente, não dá mais para viajar de avião”.
    Resignada e estafada, diz:
  • ”Sim, minha filha…. Agora, só para Lisboa”.

8 comentários sobre “Como sambar um tango

  1. Cris, que maravilha de crônica!
    Parece que estou viajando junto com o grupo.
    Você além de escritora nata, é uma heroína!
    Fazer uma viagem dessas é para leoa!
    Parabéns

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