“Sake in Rio”, eu fui!

Era para ter sido só uma entrevista, mas acabei fazendo um curso. 

Conheci o Adegão há muitos anos, ainda na sua antiga loja “Adega de Sake” na Liberdade, em São Paulo, em passeio conduzido e comentado pelo melhor guia que se pode ter: o querido amigo Luiz Horta. 

– Adegão, Luiz?, perguntei. 

– É Alexandre Tatsuya Iida, mas ninguém o chama assim.

O nome cabe como uma luva, mas daquelas gigantes de baseball, imensa como o rapaz que é também coração, emoção, o superlativo Adegão. 

Soube que viria ao Rio para ministrar o primeiro Curso intensivo de formação de Sake Experts do Rio de Janeiro e pedi o programa para entender a abrangência. Tinha de tudo: história, ingredientes, processo, tipos, categorias, temperaturas, rituais, etiqueta, serviço e até aula de japonês para entender os rótulos… Resultado: caí em tentação, mendiguei uma vaga na turma lotada e saí “experta”, com diploma embaixo do braço e boa dose de bestice. 

Não sabemos exatamente quando aconteceu, mas a cultura japonesa nos pegou pelo estômago. Enquanto minha geração cresceu com as cozinhas francesa ou italiana como referências absolutas, a geração dos meus fihos se orientalizou: “Passa o gohan?”, “O tonkatsu daqui é bom!”. 

De uma hora para outra, percebi que é mais fácil adolescentes falarem de rāmen que de um cacio e pepe ou pedirem um mochi no lugar de um petit gâteau. Sushi e sashimi são tão ‘feijão com arroz’ que já nem merecem o itálico nesse texto. 

Ainda assim, nosso conhecimento é superficial, o que também se reflete nos prêmios que distribuímos. 

Em concursos gastronômicos, entendemos que “o melhor bar” e o “melhor restaurante” devem ser avaliados como coisas distintas, assim como separamos os prêmios das pizzarias dos da alta gastronomia italiana, por exemplo. Da mesma forma, uma casa que serve rāmen (quase um fast food japonês), não deveria competir com um izakaya (bar de rua simples, com menu enxuto, em geral sem garçom) e muito menos com um restaurante que serve refeição kaiseki (um menu formal com várias etapas e uma sequência de preparações bem determinada), explica Adegão. E é a mais pura verdade…

Falando em restaurantes, conheci no balcão do Euskalduna, um ótimo restaurante na cidade do Porto, o empresário Pablo Alomar Salvioni, que revende produtos de origem japonesa em Portugal e na Espanha. O ‘boa noite’ civilizado que se dá ao vizinho de bancada terminou em entrevista (bem eu…). Para Pablo, o consumo de sake naqueles países está descolando dos restaurantes típicos e indo para outras especialidades por conta da harmonização, já que a maior parte dos chefs estrelados de hoje serve pratos, usa técnicas de cocção e ingredientes japoneses. É uma nova frente para o crescimento do mercado, além do consumo doméstico, que já é alto.

De quebra, fiquei com várias dicas: presunto cru ibérico faz par perfeito com Junmai Ginjo porque o umami da bebida complementa os óleos do jamón, além do sal da comida ressaltar os aromas do sake. E mais: caviar vai bem com Dai Ginjo; boeuf bourguignon com Koshu maduro; queijo de cabra fresco com Ginjo Junmai, queijo maturado com sake Yamahai; queijo de massa firme e envelhecido com Koshu; cotoletta alla milanese com Tokubetsu Junmai e pizza com Junmaishu o Honjoso. Anotou?

Na mesma viagem, soube por Edgar Alendouro – sommelier da Niepoort, um dos produtores de vinho mais inovadores de Portugal – que a casa também vê potencial na bebida e lança em janeiro dois sakês, em séries limitadas com dois lotes de menos de 2.000 garrafas, cada. O sakê base foi trazido do Japão e o blend foi feito pelo próprio Dirk Niepoort em sua cave (em Vila Nova de Gaia) a partir dos sakês da pequena Brewery Tanaka, fundada em 1885. 

Menandro Rodrigues, sócio do Haru Sushi Bar, foi um dos primeiros do Rio a fazer o curso, mas teve de ir a São Paulo por 8 semanas para receber seu diploma. Do vai e vem nasceu uma parceria. Afinal, o Rio é o segundo mercado nacional para o sake e Adegão percebeu que precisava levar o curso para as capitais onde o consumo da bebida é grande.

Para a nossa alegria, não só o Haru foi o palco do Sake Intensive que fiz no Rio, como será de outros eventos. A ideia da dupla é fazer uma Semana da Gastronomia Japonesa no Rio.

Vai ter aula de etiqueta japonesa, situações de consumo de cada comida e bebida, frases básicas e como se portar em restaurantes, como usar (e não usar) cada tipo de hashi etc. Também havéra aula sobre os segredos do arroz, dos pratos clássicos até o shari (arroz para sushi). Em outro dia, haverá um jantar comentado com a abertura de um atum inteiro sobre o balcão do Haru, com a explicação de cada corte e harmonização de cada parte do atum com seu estilo ideal de sake. Segundo Alexandre, o atum é como um boi: cada peça tem sabor, nível de gordura e textura diferentes, daí merecerem bebidas distintas. Akami com daiginjo, ōtoro com junmai e por aí vai… Nossa turminha de sake, com certeza, vai encher uma sala. 

Me lembro exatamente quando Adegão virou SAKE SAMURAI no Santuário Shimogamo, em Kyoto, lugar em que apenas sacerdotes podem pisar. O título foi criado em 2005 pelo Japan Sake Brewers Association Junior Council e é outorgado a pessoas que se destacam na promoção, divulgação e comercialização da bebida. São apenas 95 pelo Mundo e Alexandre é o único na América Latina. 

Encho o peito para dizer que sou uma das 84 Sake Experts no Brasil, formada pelo Alexandre. Afinal, a turminha carioca recebeu o diploma pelas mãos do Cônsul Geral do Japão no Rio de Janeiro, Sr. Ken Hashiba, que entende que esse tipo de iniciativa ajuda a propagar a cultura e o consumo de produtos japoneses no Brasil. Como a turma lotou num piscar de olhos, haverá novo curso nos dias 4 e 5 de fevereiro e, quem sabe, ainda mais. 

Bebi e vendi sake em meus restaurantes por mais de 20 anos. Achei que sabia alguma coisa, mas a verdade é que não sabia nada. Não sabia, aliás, que sake é o nome dado a qualquer bebida com mais de 1% de álcool. Cerveja é sake, whisky é sake, vinho é sake. Informei.

Vá lá aprender, também. Kampai!

A “cura” em tempos de coronavírus

[texto publicado na Veja Rio em abril de 2020]

No tempo em que eu enchia linguiça, eram dois cubinhos de carne, um de gordura e um tanto de temperos, assim, nessa ordem. Quem queria que eu me ocupasse era Dona Laura — nenhum dente na boca —, e eu fazia aquilo por horas, escorregando as mãos pela tripa sebosa. Naquela época, a luz da fazenda ainda era a do gerador. Às vezes, tremelicava e… Puf! Ficava eu com o dedo parado, sem escorregar nada, esperando voltar. Prendia a respiração, vinha a luz… E eu enchia linguiça. Não sabia de vírus, boleto, crise, fronteira, leito, mortes. Pegava numa bacia os dois cubinhos de carne, na outra um tanto de gordura, e num prato de florezinhas catava os temperos, escorregando as mãos pela tripa sebosa, até o nó.

Lembrei da cena da infância, nesses dias de quarentena, porque cada segundo cismou de ter meia hora. Eram dias simples aqueles, em que eu temperava, salgava, “curava” coisas. Bem que podia funcionar com a gente agora…

Fosse mineira, tudo estaria resolvido. Escolheria ser “carne serenada”, “orvalhada”, a preparação típica do norte do estado, quase extinta. Espalharia sal pelo corpo — um bom punhado por quilo —, descansaria por cinco horas e depois iria até o parapeito da janela, para me sentar no sereno por duas noites. Acordaria curada e rebatizada com poesia.

Com a cabeça voando até a Sardenha, me imaginei ova, arrancada das vísceras de uma tainha, lavada, salgada, prensada e posta para secar, esperando que bentu maestru — o vento Mistral — me batesse violentamente no rosto, até o fim do outono. Acordaria bottarga, curada do mesmo jeito que os fenícios, primeiros colonizadores da ilha, fizeram há 2000 anos. Na vizinha Córsega, escolheria ser figatellu, ou figateddu, como vi chamarem no sul. Eu, o porco, viraria linguiça feita de carne, gordura e fígado, por vezes juntando meu baço, coração e pulmão. Depois de ter a anatomia rearranjada para a cura, me regaria com um pouco de vinho tinto (perfeito!) e alho. Talvez fosse defumada, talvez não, mas, como manda a tradição, esperaria para me salvar entre a primeira e a última neve do inverno.

E, toda vez que falo em neve, me vem à cabeça a imagem de Pasang, um nepalês que conheci nos Estados Unidos. Antes de migrar, era escalador de elite e, a partir de sua cidade natal, a 3000 metros de altitude, sua rotina consistia das pequenas escaladas de quatro dias a um mês, ajudando a turistada a subir o Everest.

Eram sete meses no sobe e desce e outros cinco, descansando junto da família, como agora fazemos na quarentena. Como budista, dizia-se quase vegetariano, mas vez por outra, antes do tempo piorar, visitava um mercado “de hindus que matam” e comprava um filé de 400 gramas de iaque, que era toda a carne que sua família precisaria por um mês.

Minha cura enquanto iaque, dos poucos rebanhos que sobrevivem no Himalaia, seria a salga com um tanto de timur, prima da pimenta-de-sichuan, que, assim como o jambu, adormece a língua. Depois de sete dias, bem seca e perfumada, poderia me sentar ao lado de um belo curry de legumes. Achei bonita a causa.

Fosse primavera, estaria a passeio pela costa espanhola e me salvaria da pandemia como as famosas anchovas do mar Cantábrico, preparadas nas províncias de Laredo ou Santoña. Entraria num barril, tranquila por nove meses, coberta de sal, pimenta e outros condimentos secretos, para acordar melhor. Um bom produtor me regaria com o melhor azeite da região e eu renasceria enlatada, com a carne firme, mas macia e com um papelucho sob meu corpo, onde alguém leria: anchova feita a mão por “Amparo”, “Josep” ou outro artesão treinado por mestres-conserveiros.

E, por fim, se a cura tivesse de ser muito longa, migraria para os pastos verdes do norte da Holanda, abaixo do nível do mar, e teria a vida de um gouda envelhecido, o queijo mais importante do país e um dos melhores que já comi. Depois de trinta meses de paciência, meu alter ego lácteo, vitorioso, teria um sabor profundo, gordo e de nozes. Com a mágica maravilhosa que só o tempo traz, pequenos cristais se formariam em minha massa alaranjada de consistência indecisa — entre cremosa e quebradiça — e eu seria, enfim, memorável. E a cabeça voa longe, quando o corpo não pode ir ou vir.

A origem de várias dessas comidas, abundantes hoje em dia, foi resposta à PRIVAÇÃO, fruto da necessidade de aproveitar cada pequeno pedaço de alimento e conservá-lo, enquanto havia. A maioria de nós nunca enfrentou seca profunda, invernos rigorosos ou escassez, mas a mesma privação que causa a ansiedade louca de agora vai parir a solução. É preciso ter calma, muita calma. Seja em três dias ou trinta meses, a cura sempre vem.