O Hotel e a fábrica de burel

Manteigas no nevoeiro

“Como não me apaixonar por um lugar chamado Manteigas?”

Disse a frase logo que pus os pés na pequena vila portuguesa, na Serra da Estrela, sob a premissa falsa de que se trataria de um batismo vindo da comida. Não foi.

Ali, se produzia pequenas mantas, mantecas. Daí a virar Manteigas, foi um pulo.

Passeando de jipe pela Serra, cruzei com um pastor adolescente, muito entediado, é claro. Afinal, o pastoreio foi atividade que perdeu muito interesse ao longo dos anos. Que diabos estou fazendo aqui no alto, cuidando de um bando de animais, sem folgas ou sinal de telefone?

No passado, o pastoreio e o esforço hercúleo de criar aqueles socalcos com a enxada para viabilizar a agricultura nas montanhas era a única forma de pôr pão na boca das famílias que moravam no alto da Serra da Estrela, já que as terras baixas eram dos ricos. Havia opção? Não. Hoje, poucos parecem querer abraçar essa vida.

Amigas daquela gente, mesmo, eram as ovelhas bordaleiras que transformavam os pastos cheios de ervas secas em leite, carne, lã e adubo. Para proteger do frio, chuva, neve ou calor enquanto acompanhavam as bichinhas, lá estava a manta de BUREL pendurada no ombro dos pastores, um tecido impermeável, muito resistente e barato, usado desde o século XI.

O antigo burel, de preto, branco e bege – as cores da lã das ovelhas – hoje tem padrões, formatos e cores lindos

Para quem não sabe, escolher e fiar a lã, colocar os fios um a um no tear, juntar a teia e a trama para depois prensar o tecido é a atividade artesanal mais antiga de Portugal.

A crise de 2008 levou ao fechamento sucessivo de quase todos os lanifícios da região, mas Isabel Costa e João Tomás viram ali uma oportunidade. O casal comprou a antiga fábrica Império, já em processo de insolvência, e fez dela a Burel Factory que preservou a história, modernizou os processos, criou estampas, objetos de decoração e hoje exporta para vários países lindas peças em burel feitas com preceitos sustentáveis.

Aí vem a grande confusão: agendamos uma visita à Burel Factory no hotel e acabamos na Ecolã, uma fábrica super colada, ao lado. Na entrada, informamos que a visita tinha sido agendada e ninguém nos disse que estávamos no local errado. Tudo foi muito bonito e a visita, muito agradável, mas… não é? Quem for na certa, me conte.

Além do lanifício, a família é dona dos hotéis Casa das Penhas Douradas e da Casa de São Lourenço, onde me hospedei. E foi lá, da varanda do meu quarto e aquecida pela minha manta quentinha de burel, que avistei o cobertor denso de nuvens deitado sobre a pequena Vila de Manteigas.

O Salão da Casa de São Lourenço

Quem me conhece sabe que não ligo para SPAs ou frescuras; meu maior interesse é e, sempre será, comida boa e com identidade local, de preferência com boa carta de vinhos. Tinha tudo isso, ali. Uma cozinha de montanha com muita qualidade e pouca invencionice (graças a Deus!).

Do café da manhã ao jantar, tudo no restaurante da Casa de São Lourenço, com vista espetacular debruçada sobre a Manteigas, foi muito bom: houve uma profusão de bolos, pão de centeio, ótimos iogurtes do leite denso dali, baldes de queijo Serra da Estrela e outros tantos de cabra e ovelha; também comi uma salada de beterrabas com aspargos frescos, pinhões e mentrasto que ficou na memória; uma truta de Manteigas que vinha crocante e empanada com escabeche, cenourinhas avinagradas e a típica broa de milho; um caldo aveludado de castanhas com fio de vinho do Porto que estava tão delicioso que fiz questão de repetir; e um cabrito de Campo Romão (então!…) que vinha com arroz pingado de assadeira, caldo defumado e o tradicional esparregado. Todo o cardápio muda de acordo com as estações, como deve ser, e o chefe de sala e sommelier José Reis soube me orientar nas escolhas dos vinhos locais que não conhecia.

Cabrito de Campo Romão com arroz pingado de assadeira, caldo defumado e o tradicional esparregado

Não soube escolher entre as delícias de Manteigas e a beleza das “mantecas”. Só sei que o programa casado, sem dúvida, vale a viagem.

A visita à Ecolã não requer marcação.

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