
Sou péssima fisionomista, terrível com nomes, mas jamais me esqueço do que comi ou bebi. Não falo isso com qualquer orgulho. Não serve para muita coisa, além de evitar que gaste um bom dinheiro em algo que não presta ou de ganhar mais peso (ainda) com comida ruim. Trocava por habilidades sociais mais úteis.
Era 2014 e estava num almoço de trabalho no Ferreira Café, um restaurante de comida portuguesa em Montreal, quando provei um espetacular Coche 2010, de Dirk Niepoort. Um bom vinho tem sempre a virtude de me calar (anotem, pode ser útil). Acho que é o momento em que minha cabeça desmemoriada se ocupa de achar a gavetinha de “informações a guardar, para sempre” e decide desligar as demais funções do meu corpo.
O primeiro gole abriu outro compartimento mental e lembrou de uma taça do Niepoort Navazos 2009 que bebi num menu degustação no extinto Oud Sluis, na Holanda, e decidi que um sujeito capaz de fazer ‘isso e aquilo’ merecia, sem dúvida, uma pesquisa mais profunda.
Desde Montreal, portanto, me encarreguei de conhecer absolutamente todos os rótulos da Niepoort que consegui encontrar, baratos ou caros. Talvez por isso, quando finalmente recebi Dirk e seu filho Daniel no meu restaurante, em 2018, eu exibisse um sorrisinho daqueles de terapeuta, como quem conhece os segredos do paciente. Foi um almoço adorável, feito dos belos vinhos levados por eles e, até por isso, de grandes silêncios de minha parte.

Apesar da proximidade etílica com Dirk, fui parar na Cave Niepoort a convite de Nina, sua mulher, produtora de chás e personagem do último post, com quem estivera um dia antes. A ideia era ver as gavetas de secagem de seus oolong orgânicos e as pipas usadas de Porto que perfumam seu Pipachá, encerrando com chave de ouro a visita à plantação, no dia anterior.
“Edgar está pronto para lhe receber”, disse Nina.
Quando o portão se abriu, Marcela Lebl nos esperava diante de dois imensos tanques de aço com um astronauta e um foguete pintados, obra de João Noutel, um artista do Porto. E assim começou o tour às Caves Niepoort da Serpa Pinto, em Vila Nova de Gaia.
Enoturismo é um departamento novo na empresa; os armazéns e as velhas caves do século XIX só foram abertas à visitação no fim de 2021.
Mais que um passeio, é uma viagem no tempo que começa com aquele empilhado de barricas gigantes de todas as épocas sobre o chão de terra batida e desemboca no antigo escritório/laboratório da vinícola, lindo e congelado no tempo, com suas amostras, pipetas, notas e fotos da família pelas paredes.
No fundo, um grande salão cinza une o passado, no armazém com pé direito alto, paredes úmidas e janelas escuras e o presente, feito das prateleiras elegantemente iluminadas de um bar, sala de degustações e loja. Em vários nichos e estantes distribuídas pelo espaço, vinhos próprios ou de parceiros como a Equipo Navazos, além daqueles que importa com exclusividade da França, Alemanha ou Itália.

Cheio de ótimas intenções, lá estava Edgar Alendouro, antigo sommelier-fundador do Euskalduna (considerado como um dos melhores restaurantes do Porto), com passagem também pelo Mugaritz, que agora se encarrega das visitas técnicas, do clube de vinhos, da loja, dos chás e dos eventos privados da Niepoort.
– Que estilo de vinhos você gosta?, perguntou.
Falei “assim”o básico:
– De Portugal, vinhos de regiões mais frias ou Madeira… de resto: Borgonha, Piemonte, Jura, Jerez, sei lá…
– A vantagem desse espaço – disse Edgar – é que cada degustação pode ser única e adaptável ao gosto do cliente.
E é verdade. Afinal, a Niepoort tem de tudo, tanto de estilos quanto de regiões: faz coisas no Minho, Vinhos Verdes, Douro, Dão, Bairrada, Alentejo (sem mencionar os vinhos que produz fora de Portugal).
Ótimo leitor de desejos, Edgar começa a abrir coisas perfeitas. Poderia falar de várias delas (provamos dez), mas destaco algumas:
- Vinhas Velhas Bairrada (Bical e Maria Gomes) 2018 – com nota oxidativa, é fresco, mineral, salino, com boa acidez e o solo de argila calcária mostrando ao que veio. As vinhas são velhas, de 80/90 anos e o vinho envelhece em foudres (de 1.000 litros) usadas por mais de 30 anos, do Mosel. Vinha os foudres, que equilibram a madeira num mundo que, infelizmente, ainda parece viciado nela!
- O Ururabo (significa “flor”em Bantu), um vinho feito em botas antigas de Jerez. Produzido pela primeira vez em 2019, no Douro, é 100% gouveio (casta subestimada que funcionou perfeitamente bem para esse estilo de vinho). Vinificado com um branco normal, com a vantagem de ter desenvolvido a “flor” emprestada pela ‘bota’ (tonel de 500 litros) cedida por um amigo espanhol. Doze lindos meses com ela. Um vinho com muita fruta (viva a gouveio!) e complexidade.
- Já tinha provado várias safras do Conciso (tinto), mas a 2019 foi uma das preferidas, com sua fruta vermelha fresca e nota floral. Feito predominantemente de baga e jaén é um glouglou de pura alegria. Ainda jovem, mas com futuro promissor.

Quando pensei que não era possível melhorar algo ótimo, foi.
Não se sabe ao certo o que levou o avô de Dirk a comprar os imensos garrafões esverdeados, de 8 a 11 litros, de uso farmacêutico. A hipótese mais provável foi a alta do preço do vidro, à época, daí ninguém ter pensado na evolução do vinho, e sim na economia: o jeito era engarrafar o maior volume de vinho no menor número de garrafas.

Nascia ali um estilo, inaugurado pela vinícola: os Garrafeira do Porto [que já existiam na Madeira, em vidros de 20 a 25 litros].
Os Garrafeira começam como um Porto estilo ruby (passando de 4 a 6 anos em pipas) e, ao final do estágio em madeira, são envasados na ‘demijohn’, o tal garrafão. Para a minha sorte e por incrível generosidade de Dirk, bebi um Garrafeira 1977 (feito em 1972) que abrira com amigos no dia anterior. Sim, um vinho de 50 anos no meu copo.
Garrafeiras são muito raros e caros (os da Niepoort, mais ainda) até porque só recentemente foram regulamentados. Para quem tem o Ruby como referência, garanto que esse é “outro bicho”; também frutado no aroma, mas bem mais aberto e mais fresco que os outros estilos, com ótimo equilíbrio entre fruta e dulçor. O gole daquele 77 veio cheio de damascos e figos secos. Um privilégio.
E não parou por aí.

Descendo mais um nível, conheci um espaço ímpar reservado para os “N Collectors”, um clube de 872 membros admitidos por convite, que tem acesso a vinhos raros que podem ser degustados ali. O número é uma alusão ao ano de fundação da empresa e naquela seção da cave histórica, que abriga também uma linda coleção de abridores de garrafas da família, foi montada uma cozinha com equipamentos modernos (a turma do Mugaritz já cozinhou ali) para dar apoio às degustações conduzidas por Edgar.
De repente, um barulho de chaves pesadas e abre-se um portão: “Podem passar”. Era uma espetacular cave/museu com garrafas da família, incluindo uma das cinco demijohns Lalique, lindíssimas, representando cada uma das gerações da família Niepoort. Espiei um nicho cheio de garrafinhas gordinhas de um Colheita 1900, outro com uma de Porto 1869, todas cobertas de pó e umidade, intocadas, com direito à “angel’s share” – as marcas negras da evaporação do álcool das barricas ao longo dos anos – no teto abobadado.
Quando já estava ali naquele “céu”, Edgar apanha uma pipeta e me oferece a amostra de um barril. Era um porto branco 1968, que acabara de ser lançado, definitivamente o copo mais espetacular que bebi no ano, um nariz sóbrio, elegante, com nota cítrica na boca e adoráveis amêndoas e frutos secos de fazer chorar.
Morri? Não. Estou aqui para contar. Em que gaveta mental guardar todos esses vinhos? Num gavetão, meu caixão.
Para quem não teve a experiência que tive no dia anterior – os chás Camélia também podem ser degustados neste espaço num Wine & Tea Tasting.
Os vários modelos de visitas podem ser agendados [aqui].
E mais fotos e vídeos da Cave, no meu Instagram, [aqui]. Boa viagem!
