Uma viagem feita de coisas que não fiz

Castelo “inventado” de Folgosinho

– Tá vendo aquela ovelha? É a mais velha, tem o chocalho maior. Em breve, vira chanfana.

– Porcos? Antigamente não havia aqui no topo simplesmente porque não pastam. Disputavam a comida com a gente e o suprimento aqui no alto é escasso.

– Sabe aquela única árvore no meio dos arbustos? Quando há um verde mais vivo ou árvores é porque ali existe uma linha d’água. Aquele rio que não tem nome porque não dura: no Verão está seco, no Inverno corre água.

– A planta que cresce primeiro, logo após um incêndio, é o “feto”. E fetos são dourados.

Falar com a gente dali e aprender pequenas coisas ajuda a entender a Serra da Estrela. “Não vá no Inverno, especialmente depois dos incêndios!”, me disseram. Pois fui, a filha queria ver a neve, que não compareceu. E daí? Adorei. É boa época para ler entrelinhas e entender as dificuldades históricas, quando a vegetação exuberante não ofusca todo o resto.

Claro que deve ser lindo o lilás das urzes e o amarelo e branco das giestas, na Primavera. Dizem que o Outono no Covão d’A Ametade é espetacular. Não vi nada disso. Bastou eu sair de lá, aliás, para cair o primeiro “nevão”. Ao que parece, Folgosinho coberta de branco ficou um encanto.

Não se sabe ao certo qual foi o rei de Portugal (Afonso Henriques ou Sancho I) que teria dito: “Descansemos aqui e vamos tomar um folgosinho de ar”, daí o batismo da aldeia. A lenda varia, mas não importa; essas folgozices fazem a graça de Portugal.

Nos dois dias em que lá estive, logo depois do Natal, ainda ardiam os “madeiros”, tradição antiga nas aldeias e uma espécie de rito de passagem para a idade adulta: os rapazes, no último ano antes de cumprirem o serviço militar deveriam subir a serra e buscar os troncos de carvalho ou azinheira mais grossos que achassem e levar até o adro da igreja ou praça maior, na noite de Natal. As meninas se encarregavam de enfeitar carroças e bois com fitas e flores. Como esse tipo de madeira costuma queimar por vários dias, a roda virava ponto de encontro dos jovens.

Era dia 27 e o monte de lenha queimada, perto da hora do almoço, abria o apetite.

A ideia era comer n’O Albertino, lugar simples de comida típica (queijo de ovelha, cabritos, javalis, arroz doce e tal). Acreditem se quiser, por 19 euros se faz a farra com 3 entradas, 4 pratos e mais 3 sobremesas, com vinho da casa e pão. Eu juro. É muita comida. Adorei tudo que espiei ali, mas estava lotado.

O Albertino fica estacionado na minúscula praça, lindinha, que estava ainda mais prosa naquele dia com as fitas de crochê coloridas enroladas nos troncos e umas bolas de Natal, de palha crua ou pintadas de vermelho, penduradas nos galhos. Aliás, quase não encontramos vaga na aldeia porque uma dúzia de carros ocupava todas as disponíveis. Nunca esteve tão cheia – disseram – é o turismo! E apontaram para umas placas em inglês aqui e ali pelas casas, oferecendo quartos.  

a melhor versão de árvore de Natal que já vi

Decidimos que o almoço ia virar piquenique.

Além daquele desenho comum às aldeias vizinhas, feito da igreja, pracinha, lojinha e uma tripa de casas à volta, Folgosinho tem um castelo “inventado”, um castelo de ninguém. Na verdade, parece uma torre vigia. Dizem que Viriato, herói da Lusitânia no tempo dos romanos, teria lançado as primeiras pedras para poder avistar o perigo de longe. Dizem…

Partimos para Sabugueiro que nos recebeu com a placa “a aldeia mais alta de Portugal”. Há pelo menos duas outras que disputam o título, mas o importante é que ali, todos acreditam.

Paramos no Café Estrela d’Alva, que ninguém chama assim. É a “Casa das Marias”, da Maria de Lourdes, mãe, e da Maria, filha. A loja tem toldo verde e letreiro “bom queijo – presunto – enchido” com adesivos coloridos pregados no vidro, além das peles e moletons na entrada que dificilmente me atrairiam, não tivesse sido levada por um amigo que jurou que ali acharia o serviço mais simpático das aldeias. Não mentiu.

Lenço na cabeça e vestido longo preto, D.Maria de Lourdes é uma aldeã caricata de bochechas rosadas, tão idosa quanto simpática, que me alimentou sem parar. Seguindo a minha filosofia de que comer em pé não engorda, aceitei tudo sem qualquer resistência: licor de sabugueiro, de medronheiro, ginjinha, chouriço, paio… Entre um naco enfiado em minha boca e outro, tombei de amores pelo Serra da Estrela Velho.

O queijo da Serra, feito de leite cru de ovelhas da raça bordaleira ou Churra Mondegueira, sal e cardo, vocês já conhecem, mas nunca tinha provado o “Velho” [adoro a falta de sutileza], que é maturado por mais de 120 dias.

A casca não é boa de comer, mas linda de ver, feita quase sempre com colorau e azeite. O que comi tinha uns 150 dias. O odor era intenso, o sabor forte, a textura era macia e quase nada granulosa. Era frutado e um pouco picante, por isso se serve com alguma compota ou fruta fresca para limpar o palato e o “punch” do bicho. Levei dois.

Comprei também os típicos BISCOITOS DE AZEITE, que têm gosto de bolo branco comum com açúcar cristalizado em cima, com a surpresa de levar aguardente na massa. O MEL DE URZE, também indispensável, é feito do arbusto abundante na região. Denso, viscoso e escuro e tem um fundo amargo, como já notei nos méis de outros arbustos de regiões bem secas. O LICOR DE SABUGUEIRO, que batiza a aldeia, é muito aromático e delicioso. Levei também, claro, além da ginjinha feita ali na Serra. Só não levei D.Maria de Lourdes “coisa-mais-doce” comigo, porque a filha ficaria enciumada.

Catamos uma cesta de piquenique no hotel e juntamos aqueles achados a outros típicos dali: um Quinta da Passarella A Descoberta, uns enchidos, uma geleia de CEREJAS DO FUNDÃO – as preferidas em todo o mundo – um PÃO DE URTIGA e paramos para o piquenique diante da barragem e junto às dez capelas que compõem o Santuário de Nossa Senhora do Desterro (erguidas ao longo de mais de 200 anos – entre 1650 e 1892) nas margens do rio Alva.

Afinal, não teve neve, não teve o restaurante na aldeia, sei lá se Viriato viveu em Folgosinho e Sabugueiro não é a aldeia mais alta, mas tinha todos os motivos para levantar as mãos para o céu e agradecer.

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