Arkhe, um desafio filosófico

“E esse tupinambo, não tem alma?”

Sempre que vou a Lisboa, sejam 3 dias ou um mês, considero obrigatória ao menos uma refeição no Arkhe. No almoço, de preferência, porque como costumo dizer, meu metabolismo e eu nos divorciamos há alguns anos e, infelizmente, umas 5 horas da tarde é o último horário em que ele aceita trabalhar sem reclamar.

Quando recomendo o restaurante, me sinto tentada a dizer que não é vegetariano. Nunca consegui mentir, mas há quem torça o nariz, o que é simplesmente lamentável. Perder essa experiência por falta de carne é um grande desperdício.

O lugar é a feliz junção de duas personalidades totalmente distintas: João Ricardo Alves, o chef brasileiro instrospectivo de movimentos contidos, que adora ficar nos bastidores, e Alejandro Chávarro, o sommelier colombiano de currículo impecável (Alain Senderens, David Toutain, Quique Dacosta etc), expansivo de gestos dramáticos, que se ocupa do salão. Sócios (e gênios) tão diferentes quanto absolutamente complementares, cada um no seu quadrado.

Vi a casa crescer e se aprimorar lentamente, desde o mês da inauguração. Investiu em decoração, mobiliário e serviço; um caminho de quem se prepara para as estrelas que merece, com uma cozinha absolutamente sustentável e alinhada com os tempos, sem que, para dar conta do discurso, tenha de abrir mão de sabor.

Posso garantir que a última das refeições no Arkhe foi a mais espetacular entre todas as feitas em qualquer outro restaurante, no ano passado. Uma sinfonia de vegetais em ponto perfeito, texturas, contrastes sutis, equilíbrio.

Começou com um folheado de couve-flor, maçã verde, avelãs e mostarda. Uma poesia. Passamos ao inesquecível tupinambo com cogumelos da estação, batata e caldo defumado dos próprios cogumelos e terminamos com chocolate, missô e avelãs, não sem antes chutar o balde, bem chutado, com um delicioso prato de queijos, que considero etapa imperdível.  Nas fotos abaixo (são muitas, mas tenho centenas mais), faço uma amálgama dos pratos e vinhos citados, com os de outras visitas, apenas nesse Inverno.

Um tupinambo com cogumelos da estação e caldo defumado dos próprios cogumelos. Inesquecível.

Os vinhos são orgânicos e biodinâmicos, partido que sigo com entusiasmo, especialmente quando pinçados por Alejandro, que também guarda algumas joias a sete chaves em sua cave, como investimento para os anos de ápice. Jamais escolhi uma garrafa, ali. Deixo em suas mãos, de olhos fechados.

Da última vez, houve um champagne nature Fidèle, da Vouette e Sourbée, que considero um dos melhores custo-benefício da região e, também, uma kombucha da Ama Brewery Hiru feita com folhas de chá Malawi Green e peônias brancas, sinceramente espetacular. Em seguida, um (respirem porque o nome é grande) Eremitas, do Douro Superior Paulo de Tebas Mateu Nicolas de Almeida 2017, de solo xistoso, maravilhoso, com notas de pêssego e bem mineral. E, ainda, um Véu de Xisto do Luiz Seabra, envelhecido sob flor (delícia). Como se não bastasse, um finíssimo e fresco Jura cuvée Special do Phillipe Butin com suas notas de avelã e raspas de cítrico. 

O cardápio muda a cada Estação, como deve ser, mas eu não. Estou por lá, do Inverno à Primavera. 

Aristóteles foi um dos primeiros filósofos a abandonar o consumo de carnes, já que acreditava na transmutação de almas. Eu, que gosto de um bom embate, se pudesse voltar no tempo convidaria o filósofo para um jantar no Arkhe e, em seguida, perguntaria: E agora, Aristóteles? Vai dizer que esse tupinambo não tem mais alma do que muita gente?

Mais informações, aqui: Arkhe

Couve-flor com maçã verde, avelãs, mostarda e funcho, um prato delicado e perfumado
Carbonara de raiz de aipo, fonduta de parmesão e gema curada
Excepcional e cheia de nuances e texturas na boca, essa beterraba com rábano picante, tapioca e dashi
O segundo salão, mais intimista
chocolate com missô e avelãs
Das belezas que acompanharam meus queijos

A esquina de casa – Parcelles, Paris

A cada viagem que faço, procuro o “restaurante da esquina” ideal; uma espécie de gênio da lâmpada do meu estômago, que merecia morar sempre perto de casa. 

Tombe a fome para saladas ou gordices, a ‘esquina’ está sempre lá, perfeita. Não tem rococós, pinguinhos calculados, esculturas comestíveis ou utensílios caríssimos; só qualidade. Ali, o serviço é eficiente e quase invisível, elucidativo sem ser afetado e, nem preciso dizer, a sala de estar da minha alegria orbita em torno do vinho. 

O ponto já era ímã desde os tempos do Taxi Jaune, restaurante fundado em 1934 onde artistas e outras figuras de importância iam atrás da famosa carne de cavalo. Em lugares afetivos como esse, saudades não são facilmente substituíveis, mas não havia ninguém melhor do que Sarah Michielsen, com seus 20 anos de experiência (dirigiu o Gusto, também o Le Temps au Temps e conseguiu uma estrela Michelin no seu antigo Itinéraires) para comprar o antigo restaurante e ainda fazer o público voltar com força, fazendo do Parcelles um dos bistrôs mais queridos do momento, uma unanimidade em guias de todas as cores.

A passagem do ponto se deu no auge da pandemia (um bom momento para se livrar das amarras de uma cozinha estrelada). O movimento incluiu também a abertura de uma adega-épicerie do outro lado da rua, com patês, terrines, rillettes, além de um sotaque espanhol nos jamóns, morcillas e chorizos para levar, junto com uma ótima seleção de vinhos predominantemente orgânicos, biodinâmicos e naturais. 

Aquela apreensão que me acomete a cada novo restaurante, passou na primeira espiada na prateleira ao lado: tinha um Selosse, um Cappellano, um Échezaux do Dujac, um Hermitage do Jean-Louis Chave… Pas mal. Apesar das garrafas-estrela, a carta de Bastien Fidelin tem vinhos para todos os bolsos, com a equipe preparada para conversas sobre harmonização ou estilos que combinam com cada cliente. 

A comida de Julien Chevallier é a que chamam de “bourgeoise” (cozinha-conforto-caseira-de-classe-média) com apresentação descomplicada, mas que ali vem com segredos que fazem toda a diferença: um vinagrete de tozazu, aqui, um nabo japonês hinona kabu, ali. E os preços não assustam, para os padrões franceses: entradas e sobremesas em torno de 13 euros e principais em torno de 25, com a adição, todos os dias, de um prato vegetariano . 

Fui de beterrabas com folhas de vinagreira, sabayon de estragão e meu adorado queijo de ovelha dos Pirineus: o tomme de brebis. Segui com um abraço na forma de repolho cozido recheado com porco de Clavisy, foie gras, pistaches e caldo de carne (invejei vieiras e mollejas vizinhas). Terminei com torta de figos de Solliès, que estavam na época, montados sobre uma base de mascarpone que me fez sentar no colo da avó francesa que nunca tive. 

Não sei bem o que faz do restaurante um cenário agradável, talvez a rua histórica e calma, talvez a luz bonita que entra pelas janelas. Quem sabe a fórmula tenha sido não mexer no time que já estava ganhando no restaurante anterior: lindo balcão de zinco art-déco com um neon retrô acima do bar e, ainda, as paredes de pedra e mosaicos no chão do prédio do século XVIII. 

Não bastasse tudo isso, tive ótima companhia (o melhor tempero que há). Sugeri o almoço certa que ia surpreender um casal de amigos que tudo conhece (Álvaro Loureiro e Pedro Figueiredo). 

Foi surpresa? Não. Quem sabe, sabe…

www.parcelles-paris.fr/

le menu

Arbois. Por quoi pas?

Uma boa sugestão do sommelier: um vinho feito de Mondeuse na Savóia, para rimar com toda a bagunça da mesa

uma boa sugestão do sommelier: um vinho feito de Mondeuse na Savóia, para rimar com toda a bagunça da mesa

salada de beterrabas com vinagreira, sabayon de estragão e queijo tomme de brebis

mollejas com sálvia do vizinho

repolho recheado com porco de Clavisy, foie gras, pistaches e caldo de carne (bomba calórica – leve, de verdade – fantasiada de saudável)

torta de figos de Solliès com mascarpone

a prateleira da inveja