Do lado de lá, a estrada. Afinal, a casa já foi um entreposto dos Correios no século XVII. Do outro, a paz.
Com 9 quartos de frente para o verde, há ciprestes, o jardim, uma pequena horta, a piscina que só abre quando o frio não mergulha e, se andarmos um tanto para a esquerda, o cobiçado círculo de concreto chamado Observatório: um chalé isolado com vista espetacular o vale.
a vista do Observatório
O Jura costuma ser endereço de vários projetos de sonho, como o de Nicolas e Laurence Zugno, o casal adorável que faz absolutamente tudo por ali, inclusive ganhar 5 estrelas para o seu hotel, este ano. Num modelo meio “Feitiço de Áquila”, avistávamos Laurence pela manhã, no serviço de café, e Nicolas, à noite, coordenando o jantar. A intersecção dos dois acontece com o lindo filho Mattéo e os cachorros silenciosos na área privada do casal, que divide o térreo com a recepção, o bar e o restaurante.
Aqui, exibo minha incrível vocação para fotos tortas
A posição, ali, é estratégica (sempre escolhi hotéis que fiquem a dois passos dos caprichos do meu estômago). Poligny, a capital do queijo Comté, com bons restaurantes, lojas e café, fica a 5 minutos de carro; Arbois, capital dos vinhos do Jura, a 17; Port-Lesney e seu Relais e Chateaux sobre o qual já escrevi aqui, a 26 minutos; Château Chalon e seus incríveis vin jaune, a 15; a Suíça a pouco mais de uma hora de estrada; e a incrível vista de Baume des Messieurs, com suas cachoeiras e trilhas para digerir a comilança, a 21 minutos do hotel. Não sou besta, não.
Na Maison Zugno, começava e terminava meus dias, recheando o intervalo com esses pequenos trajetos. Então jantava, ao som de um jazz impecável, um menu surpresa de 3 ou 5 etapas criado diariamente a partir do que há de fresco no mercado pelo chef Quentin Defert e serviço do simpático Thibault.
Vista lateral do restaurante
A cozinha do hotel é bastante particular, para quem gosta de especiarias e combinações ousadas e – podem ter certeza – é bem mais leve que a média local. Num dia qualquer a surpresa pode ser um bolinho de queijo comté com trigo sarraceno e beterraba como amuse bouche; quem sabe uns cogumelos de paris crus com lascas de comté, emulsão de morilles, pozinho de cèpes e óleo de nozes; uma truta com batatas dauphine e molho feito com vin jaune e farinha de milho; talvez uma sobremesa de morangos frescos e suspiros, para arrematar.
cogumelos de paris crus com lascas de comté, emulsão de morilles, pozinho de cèpes e óleo de nozes
Nicolas se encarrega pessoalmente da carta ótima, que – como manda a região – é recheada de vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais.
No dia de nossa chegada, não quisemos jantar e o casal improvisou um prato de queijos no quarto, com gelatina de vin jaune, pães de fermentação natural e uma taça de Château Chalon. E eu pergunto: há algo mais 5 estrelas que isso?
O salão do Fauna, antes do jantar. Ambiente ímpar.
“Rancho” não é termo que circule tanto, pelo Brasil.
Tentando entender o que esperar, vinham umas referências de filme americano. Talvez umas imensas costeletas com molho de churrasco; uma cozinha carnívora, certamente. Minha imaginação não alcançava um lugar tão perto do mar, muito menos com uma vinícola dentro e, ainda por cima, no México.
Assim, sem a menor pista, chegava ao FAUNA, um restaurante que fica dentro do hotel/vinícola BRUMA, no Valle de Guadalupe.
Falar de vinhos é fundamental para entender o vale, responsável por 90% da produção do país. E falar da região é fundamental para entender Lulu Ojeda, a “ultra-cool” e competente enóloga da BRUMA.
Lulu Ojeda
Lulu é bicho da terra, mas passou dez anos em Bordeaux como parte da equipe de Henri Lurton – isso não é pouca bobagem.
Ali, tudo a anima: as três gotas de água que caem por ano que permitem esperar o ponto de maturidade das uvas sem ter que lidar com o estresse das chuvas, como via na Europa; a acidez natural que dá elegância e sutileza aos vinhos, o clima agradável e não “tropicaloso”, como diz, que empresta frescor e a nota de jalapeño ao seu sauvignon blanc, que aliás, parece ter achado um lar na Baja California.
A moça quer que seus vinhos rimem com o mar, portanto 70% de sua produção é de brancos e rosados, com pouca ou nenhum uso da madeira (graças a Deus) o que faz muito mais sentido numa vinícola que é parte de um conceito “farm to table”.
Provei bons espumantes, um viognier cheio de personalidade, com aromas florais e de manga; um excelente cabernet franc (menos vegetal, mais frutado) de baixíssima produção justamente porque busca frescor, menos álcool e mais acidez; um interessante Petit Syrah, esse varietal meio sem dono que Lulu chama de elo entre as duas “Californias” (a Baja e a outra) e quer chamar de seu. Ali, sem tanta extração das cascas, dá origem a um produto aveludado e elegante.
E o que você acha que é o traço mais marcante do terroir?, perguntei. “Todo mundo só fala do solo e do clima. Eu gosto de falar das pessoas”.
David Hussong (chef do Fauna) e Maribel Aldaco (chef de confeitaria), o casal adorável que nos guiou pelo Valle de Guadalupe
E assim se entende tudo. Se existe uma verdade naquele canto mágico do país, é que as pessoas são o mais importante, sem pieguice. São elas que fazem a diferença na agilidade dos caminhos que segue, o que fez com que a Bruma deixasse de ser consumida apenas no complexo hotel/restaurante e conquistasse um lugar de excelência nas boas cartas do país.
E segui meus dias com pessoas que davam o tempero, faziam a festa, mudavam o clima. Não esperava a HOSPITALIDADE (assim mesmo, em bold e maiúsculas) dos empresários, chefs e enólogos do Valle, em grupos organizados por David Hussong, sócio e chef do Fauna.
Nunca vi um clima tão grande de família, em que um indica o outro. Tem sempre uma tia, um primo que tem uma loja, cozinha ou faz vinho. Não há rivalidade. São amigos que se encontram entre abraços e cachorros, conversas compridas, cigarros, tequila, música e mezcal. E o Fauna era a nave-mãe, de onde o grupo partia em incursões aos restaurantes e vinícolas da região, como nuvens migratórias de pássaros animados.
No deserto há pouco teto, pouca parede. Afinal, se não chove… para quê?
Há inúmeros ambientes do hotel BRUMA feitos de sofás, chaises, mesas e cadeiras à sombra de árvores. É assim no Wine Garden, um dos restaurantes do hotel: uma imensa tripa de mesas ao ar livre, diante dos vinhedos e atrás de uma horta. Enquanto o Fauna tem uma cozinha regional e mais autoral, o filhote Wine Garden é programa perfeito desde o brunch até o jantar, com uma cozinha mais internacional, feita com ingredientes e vinhos dali, engolidos diante das videiras.
Conheci vários momentos do Fauna: uma manhã, em que tivemos a aula com o oceanólogo Ezequiel Hugo Zúñiga que nos impressionou com a variedade dos frutos do Pacífico; uma noite, com jantar a quatro mãos de David Hussong e Pia León; e, por fim, um almoço em torno do mar.
Durante o dia, a luz é linda. Um sol manso e dourado, que parece encomendado por um cinegrafista, ilumina cactos, oliveiras, rochas, a horta, ressalta o amarelo das flores de rúcula selvagem e o roxo dos arbustos de lavanda.
Xales, botas, chapéus: o código não escrito do Valle de Guadalupe
O almoço é palco para mesas imensas de famílias e amigos, assim como do vai e vem dos chapéus, botas e xales, o código não escrito de quem passeia pelos restaurantes do Valle do Guadalupe. À noite já se vê mais casais, mesas menores e uma iluminação intimista. Tudo estupidamente bonito.
À mesa, aguachile de abalone (molusco) com sementes; ostras com água de tomate; um peixe lindo (rocote) ao forno, impecável!, abatido com a técnica ikejime e servido com maionese de chiles; pepinos e cebola assada; amêijoa-chocolata (aprendi a amar) com chimichurri de ervas da horta; divinas vieiras puxadas em manteiga caramelizada com berinjela em tinta de lulas e um polvo com tomates assados e torresmo de vaca.
Comida de rancho pode ser comida do mar
No jantar com Pia León, a chef convidada, a parte de David foram codornas, mollejas, carnes que rimavam com meu rancho imaginário, em preparações simplesmente perfeitas, vindas de fornos encapsulados em imensos casulos de barro, maiores que eu. E preciso, ainda, fazer uma pausa dramática para as sobremesas de Maribel Aldaco, sua mulher: poesias como o mashua negro (um tubérculo de gosto suave, delicioso) com manga e cabuya, uma suculenta mexicana, ou ainda uma de mel com cristais de caramelo salgado, sorvete de leite e purê de milho azul, entre outras tantas, inesquecíveis.
salivação obrigatória ao postar: mollejasmashua negro, manga e cabuyaO Fauna visto do jardim, no jantar
Enfim, minhas definições de rancho foram atualizadas e, dificilmente serão superadas.
Abaixo, as visitas aos demais restaurantes da região. Se voltasse, faria tudo igualzinho, sem tirar nem pôr.
ANIMALÓN
Em geral, o restaurante “acontece” debaixo de um carvalho de 200 anos, mas na estação das chuvas se muda para uma área coberta cercada de videiras, cachorros e simpatia.
Me senti em casa na companhia do chef Javier Plascencia – que tem fama e restaurantes por toda parte – de sua linda filha Lauren e do marido Oscar, o chef executivo da casa.
ostras com carne assada, um troço sensacional
“Preparamos algo norteño e casual para o frio”. Por trás da introdução despretensiosa, muita técnica, equilíbrio impecável e ingredientes surpresa. Jamais casaria ostras com carne assada, mas tenho absoluta certeza, agora, que são um “match made in heaven”,
carnitas de porco e churrasco de cordeiro marinado em cerveja
Algumas lembranças ainda cutucam as saudades do estômago, como o delicioso bao de mole negro doce com frango com picles de cebola e coentro nativo. Podia comer uns 5. Ou quem sabe o maravilhoso aguachile à moda da Baja Califórnia (camarões, vieiras, polvo, abacate) ou ainda o delicado atum bluefin com lâminas de pera, pepino e morango verde com molho de azedinha. Muito bom.
Na categoria simples e maravilhosa havia salada verde com rabanetes, molho de ervas e torradinhas, que levaram o toque fenomenal de uvas defumados a frio. Como se não bastasse, fumegantes carnitas de porco, churrasco de cordeiro marinado em cerveja e 3 salsas para brincar de todo jeito com legumes variados.
Em torno de tudo, as incontornáveis tortillas de farinha, típicas da região, e outras de milho, como manda a tradução mexicana e, por fim, a sobremesa preferida foi um bolo de milho assado com blueberries, sorvete de creme fraiche e creme inglês de milho assado.
no norte do país, as tortillas são de farinha
Aqui e ali, Lauren recomenda vinhos locais, como um bom sauvignon blanc de Tecate e o ótimo Tempranillo biodinâmico Ananda da Santos Brujos.
O serviço? Impecável. E ainda termina com um mezcal provocante e delicioso chamado “la última y nos vamos”. Sei…
Seguramente, se voltar na Primavera e me mudar pra debaixo daquela árvore, não saio mais.
VILLA TORÉL
Um pedacinho do paraíso chamado Villa Torél, restaurante debruçado sobre os vinhedos da Bodegas de Santo Tomás, a primeira vinícola da Baja California, fundada em 1888.
A cozinha é sorridente e acolhedora como o chef Alfredo Villa Nueva e sua mulher, Denise. Ali, produtos da horta, do rancho ou dos pescadores vêm frescos, em preparações sem invencionices e lindamente apresentadas, para a minha alegria.
Provamos vinhos muito corretos (de novo, achei acho que a sauvignon blanc é muito feliz no México) e gostei especialmente do Barbera, com fruta direta e felizinha, que acompanhou um pato em seu próprio suco, como há muito não comia.
Destaco alguns dos meus momentos preferidos:
* Mexilhões em escabeche, salsa macha (de diversos chiles) e a nota crocante e aromática da formiga chicatana. Na mesma foto, escabeche de ovas de cavala e amêijoa generosa (o molusco gigante do outro post, absolutamente obrigatório).
* Um impecável atum bluefin que vinha com ruibarbo, – toque genial para emprestar acidez – e emulsão de gergelim.
* A simples cenoura com caldo do pato e manteiga caramelizada, que roubou meu coração.
* Delicioso arroz de coelho (como adoro coelho!) e vegetais, com gostinho de grelha.
* O pato em seu suco e folhas de azeda, que veio com o barbera.
* Enquanto todos se deliciavam com a torta de chocolate com caramelo salgado (ótima), podia comer um balde da delicada massa phyllo crocante com creme de jocoque, mel e pistaches.
Assim como aconteceu no Animalón, o restaurante se mudou para o interior por conta das chuvas, mas em geral, acontece do lado de fora. Faça chuva ou sol, o Villa Torel é incontornável. Quem nega um abraço?
LUNARIO RESTAURANTE
Fernando Perez Castros (sócio La Lomita e Finca la Carrodilla) e a adorável Valentina Monasterio, um retrato do espírito alegre de todo o grupo)
Aberto dois meses antes da pandemia, o restaurante passou pelo confinamento vendendo tamales, que não pagavam sequer a conta de luz, mas cuidavam da cabeça da equipe que começou cheia de energia e ao menos tinha o que fazer. Assim nos contou Fernando Perez Castros, o sócio, anfitrião de vinhos e refeição memoráveis em seu Lunario, último projeto da propriedade La Lomita,no Valle de Guadalupe.
A propriedade comprada pelos pais há 20 anos virou vinícola – a primeira ali com certificação orgânica da região – e em seguida restaurante, onde reina a pequena e poderosa Sheyla Alvarado, um sorriso ambulante que me encantou com a elegância minimalista na montagem de pratos e sua excelente cozinha.
De novo, em benefício de um post mais curto, escolho alguns.
o adorável menu na parede / acima de nós, uma linda claraboia
A região é a maior fornecedora de frutos do mar para o resto do México e Sheila aproveita muito bem o que tem. Houve camarões deliciosos como amuse-bouche, ostras que ali vinham com molho de tutano e queijo de ovelha e ainda jocoque (primo da coalhada) com tomates e mexilhões. Achei delicadíssimo o crudo de callo (molusco de casca comprida, mais firme que a vieira) com melão, uma poesia.
divino crudo de callo
Outro ponto alto foi o simples e elegante tamal (pamonha) de plátano e recado negro (uma mistura de especiarias e ervas socadas com chiles quase carbonizadas) e ainda o cabrito tenro com beterraba e laranja. Por fim, “já que estavam tão doces”, disse a chef, deliciosas ervilhas emprestaram originalidade, textura e sabor ao creme morangos. Genial.
pamonha de plátano e recado negro
Sigo impressionada com a qualidade dos vinhos mexicanos. Um salto imenso nos últimos 20 anos.
Bebemos tanto os Lomita como os Finca la Carrodilla, a vinícola irmã, dos mesmos sócios. Meus preferidos de uma e de outra foram o garnacha da La Lomita e o ótimo cab sauvignon 2018 da Finca La Carrodilla. Aliás, os rótulos dos Lomita são todos lindíssimos, com ilustrações do artista Jorge Tellaeche, que também se espalham por murais na propriedade.
os lindos rótulos da La Lomita
O restaurante fica nos jardins do vinhedo, diante da cozinha e embaixo de uma linda claraboia da qual pude avistar a lua. Enfim, mais uma surpresa nesse Valle adorável, feito de gente, comida e vinhos que fazem querer voltar.
CASA DE PIEDRA
sala de degustação da Casa de Piedra
No início, as pessoas dali sabiam o que faziam médicos ou engenheiros, mas um enólogo?
Depois de buscar sua formação no exterior, foi difícil para Hugo d’Acosta achar trabalho na Baja California, região que tinha só umas 7 vinícolas em 1997, paisagem bem diferente das 130 de hoje.
O sonho romântico de fazer vinhos próprios já existia, mas a aventura começou quando compraram uma casa grande demais e veio a ideia: “por que não construir a vinícola aqui, na casa em que moramos?”. Era curioso, às vezes divertido, conta a filha Daniela d’Acosta, morar num lugar em que quartos eram divididos por barricas, com a cozinha atrás dos tanques de fermentação.
E assim, num projeto em família, nasceu a Casa de Piedra, pioneira nos vinhos de alta qualidade do México.
Em degustação conduzida por Dani, provamos alternadamente os vinhos de seu pai e do irmão, Lucas, que há 6 anos dirige a Aborigen, uma vinícola-laboratório de investigação da região e suas possibilidades.
a didática, adorável e competente Dani d’Acosta
Enquanto a Casa de Piedra tem 8 rótulos, feitos com uvas plantadas e colhidas por eles, a Aborigen tem 76, e pode trabalhar com uvas de terceiros, abraçando estilos (e rótulos) menos tradicionais, de baixa intervenção.
Sinceramente, fiquei espantada com a qualidade média dos produtos, tanto dos convencionais quanto dos de baixa intervenção, que vieram absolutamente sem defeitos. Me parece que a Baja está encontrando sua personalidade.
O novo, convivendo em harmonia com os rótulos clássicos da casa
Provei várias coisas mas gostei especialmente do EP + bb Espuma de Piedra, espumante feito com chardonnay, chenin blanc e sauvignon Blanc. Delicioso. Na sequência, também achei muito leve e divertido o pet nat produzido em Querétaro, um chenin blanc com moscatel. O Vino de Piedra branco 2021 também foi ótimo e fresco, um chardonnay sem barrica, com notas de abacaxi, super fresco e mineral com uma nota oxidativa e uma “gordura”. Os três têm um nariz marcado de levedura.
Esse foi o primeiro grande vinho do México, que provei há anos atrás. Segue uma referência de qualidade, até hoje
Provamos o tinto Vino de Piedra 2019 e também o excelente Casa de Piedra tinto 2014, o melhor dos tintos, para mim, com muita fruta madura e bela nota vegetal.
Se estiver pela região, é programa que não pode faltar.
Achava linda, a pitanga, fruto que prometia tanta coisa com aquele vermelho sedutor e seus gomos arredondados que lembravam os de uma balinha, decerto cheia de açúcar.
Promessas, promessas…
A admiração platônica rendeu até minha mãe me enfiar uma delas, goela adentro. Encrespei o rosto e me tremi toda com o queixo empurrado para trás e olhinhos fechados, como quem quer dar marcha-ré no gosto estacionado na boca.
Ecaaa! Que troço mais ácido!.
Foram três anos em Petrópolis, dos meus 9 aos 11 de idade, com almoços animados para 20 ou 30 pessoas, organizados pela minha mãe, mensalmente. Eram tardes de cantoria com meu pai no violão, seu inseparável negroni, sanduíches de pepino e muito papo em torno da piscina.
Ainda salivo com a lembrança da primeira dentada bem dada num bife à Wellington, que engolia com a maionese de batatas, o bacalhau com azeite e um tanto de porco bem gordo que vinha com 50 versões de farofa que precediam a goiabada cascão derretida com sorvete de queijo minas da Leiteria Brasil e um manjar de coco com ameixas. Todos parte de um cardápio para convidados que pouco variava (e pouco ligávamos).
Foi uma infância balofa, em que tudo era frito: pão frito, queijo frito, banana frita, ovo frito; o lanchinho da tarde era brigadeiro. Sabe-se lá como sobrevivi.
A casa, e a rotina dos almoços, nos acompanhou por muito tempo até sua venda, há uns 15 anos. Passei bom tempo evitando a Serra, por conta das saudades, mas tudo voltou à cabeça e com muita força, na tarde de ontem.
Lydia Gonzalez se formou em Gastronomia, viveu 3 anos na Europa, estagiou em 12 restaurantes e trabalhou em alguns estrelados antes de se dedicar à cozinha brasileira, sua paixão.
Minha chegada em seu Angá Ateliê Culinário, em Nogueira, veio com o cheiro de terra molhada, mato e hortênsias, como no jardim de casa.
Conheci a chef num evento recente, em que eu e ela tentávamos aprender um tanto sobre os meles de abelhas nativas brasileiras. Suas perguntas e comentários me fizeram reconhecer alguém que, como eu, estuda e se apaixona por causas várias que cercam o que a gente come, e brotou bem ali a vontade de conhecer seu restaurante.
Sorte a minha.
Já no couvert, me deparei com um patê de aves, como aquele que não podia faltar nos sábados da minha infância. Ao seu lado, o quê? Uma chimia de pitanga, palavra derivada do alemão “schmier” (passar algo em outra coisa), que muito fala da cultura deixada pelos imigrantes de Petrópolis.
Ao provar a compota, não fiz careta, nem nada. A mistura fez um contraste perfeito com o cremosíssimo Morro Azul, um queijo de vaca com mofo branco, que espalhei em cima do polvilho feito com grãos dos diversos pães da casa.
Então, Lydia nos traz um pratinho com jiló fatiado e explica que era uma das comidas preferidas de seu pai, que já não está entre nós. Vinha com banana passa – até hoje, um dos doces favoritos de minha mãe – numa combinação inusitada e viciante. Pensei com carinho nos nossos pais faltantes e comidas que não podiam lhes faltar. Bastou para aquele jiló ter gosto de colo.
berinjela defumada com iogurte de amendoim, farofinha com cacau cabruca da Bahia
atum com queijo fresco de vaca e bolinho de arroz anã
Houve uma delicadíssima berinjela defumada com iogurte de amendoim, ao lado da farofinha grossa com pedaços de cacau cabruca, que emprestou causa e sabor ao prato. Depois um atum com queijo fresco e bolinho de arroz anã, variedade cultivada às margens do Rio Paraíba do Sul, que ainda margeia boa parte da minha vida. E ainda testemunhei a ótima ideia que foi regar com mate e limão um lombo de porco com abóbora. Por fim, a poesia que foi uma sobremesa de “verdes” (pepino, maçã verde, uvas e melão) com sorvete de queijo Boursin.
Lydia, porco com abóbora e molho de mate com limão e couve, o mato preferido de minha mãe
Um casal na mesa ao lado disse aos amigos, ao chegar: “Falei para eles que esse é o melhor restaurante da Serra!”, mas Lydia respondeu, prontamente: “Me diga depois do almoço porque o pior inimigo de um cozinheiro é a expectativa e o melhor amigo é a fome”.
Bem, aqui estou eu, contrariando a chef e elevando expectativas, mas saí dali leve e feliz, com vontade de bater no liquidificador um tanto da minha infância com aquele almoço, só para dar um considerável upgrade gastronômico nas minhas memórias.
Assim me senti: voltando para casa, sem nunca ter estado lá.
para mais fotos e pratos, veja o destaque no meu intagram, aqui
sobremesa de verdes e sorvete de queijo de cabra
da carta de vinhos predominantemente locais, de baixa intervenção e pequenos produtores, um ótimo riesling renano da Cão Perdigueiro, do Rio Grande do Sul
Sempre que vou a Lisboa, sejam 3 dias ou um mês, considero obrigatória ao menos uma refeição no Arkhe. No almoço, de preferência, porque como costumo dizer, meu metabolismo e eu nos divorciamos há alguns anos e, infelizmente, umas 5 horas da tarde é o último horário em que ele aceita trabalhar sem reclamar.
Quando recomendo o restaurante, me sinto tentada a dizer que não é vegetariano. Nunca consegui mentir, mas há quem torça o nariz, o que é simplesmente lamentável. Perder essa experiência por falta de carne é um grande desperdício.
O lugar é a feliz junção de duas personalidades totalmente distintas: João Ricardo Alves, o chef brasileiro instrospectivo de movimentos contidos, que adora ficar nos bastidores, e Alejandro Chávarro, o sommelier colombiano de currículo impecável (Alain Senderens, David Toutain, Quique Dacosta etc), expansivo de gestos dramáticos, que se ocupa do salão. Sócios (e gênios) tão diferentes quanto absolutamente complementares, cada um no seu quadrado.
Vi a casa crescer e se aprimorar lentamente, desde o mês da inauguração. Investiu em decoração, mobiliário e serviço; um caminho de quem se prepara para as estrelas que merece, com uma cozinha absolutamente sustentável e alinhada com os tempos, sem que, para dar conta do discurso, tenha de abrir mão de sabor.
Posso garantir que a última das refeições no Arkhe foi a mais espetacular entre todas as feitas em qualquer outro restaurante, no ano passado. Uma sinfonia de vegetais em ponto perfeito, texturas, contrastes sutis, equilíbrio.
Começou com um folheado de couve-flor, maçã verde, avelãs e mostarda. Uma poesia. Passamos ao inesquecível tupinambo com cogumelos da estação, batata e caldo defumado dos próprios cogumelos e terminamos com chocolate, missô e avelãs, não sem antes chutar o balde, bem chutado, com um delicioso prato de queijos, que considero etapa imperdível. Nas fotos abaixo (são muitas, mas tenho centenas mais), faço uma amálgama dos pratos e vinhos citados, com os de outras visitas, apenas nesse Inverno.
Um tupinambo com cogumelos da estação e caldo defumado dos próprios cogumelos. Inesquecível.
Os vinhos são orgânicos e biodinâmicos, partido que sigo com entusiasmo, especialmente quando pinçados por Alejandro, que também guarda algumas joias a sete chaves em sua cave, como investimento para os anos de ápice. Jamais escolhi uma garrafa, ali. Deixo em suas mãos, de olhos fechados.
Da última vez, houve um champagne nature Fidèle, da Vouette e Sourbée, que considero um dos melhores custo-benefício da região e, também, uma kombucha da Ama Brewery Hiru feita com folhas de chá Malawi Green e peônias brancas, sinceramente espetacular. Em seguida, um (respirem porque o nome é grande) Eremitas, do Douro Superior Paulo de Tebas Mateu Nicolas de Almeida 2017, de solo xistoso, maravilhoso, com notas de pêssego e bem mineral. E, ainda, um Véu de Xisto do Luiz Seabra, envelhecido sob flor (delícia). Como se não bastasse, um finíssimo e fresco Jura cuvée Special do Phillipe Butin com suas notas de avelã e raspas de cítrico.
O cardápio muda a cada Estação, como deve ser, mas eu não. Estou por lá, do Inverno à Primavera.
Aristóteles foi um dos primeiros filósofos a abandonar o consumo de carnes, já que acreditava na transmutação de almas. Eu, que gosto de um bom embate, se pudesse voltar no tempo convidaria o filósofo para um jantar no Arkhe e, em seguida, perguntaria: E agora, Aristóteles? Vai dizer que esse tupinambo não tem mais alma do que muita gente?
“Esse lugar tem Feng Shui”, disse uma amiga. “Sempre gostei de tudo que existiu aqui”.
Fui obrigada a concordar.
Por acaso estivera ali, um dia antes, olhando minha praça preferida através da janela do bistrô e achando a cena encantadora.
Tenho foto da Praça das Flores em cada uma das estações do ano, mas sempre pela manhã, quando vou até o Copenhagen Coffe Lab para o abastecimento regular dos meus cafés especiais, depois de atravessar a rua com o meu pão preferido: o de trigo barbela da Marquise.
Pela primeira vez peguei o entardecer visto da janela do Magnolia, como num enquadramento de filme. Fazia 9 graus e o azul profundo do céu lisboeta despencava lentamente, enquanto a praça começava a se iluminar.
Talvez o mérito do cenário bem pensado seja do fotógrafo belga Yves Callewaert, que junto com a chef brasileira Camila Martins montou o espaço em maio do ano passado. Não saberia dizer, só sei que foi ótima ideia deixar o lindo afresco da antiga padaria Renascente no teto, que me rendeu um torcicolo de admiração.
o afresco da antiga padaria Renascente
A casa é uma graça e feita para “morar”, com um cardápio cheio de pequenos pratos despretensiosos, leves e divertidos: há uma couve-de-bruxelas assada com tahine; camembert com mel de tomilho; aspargos grelhados com páprica defumada, cominho e raspas de limão; três tipos de “buns”, petiscos coisa e tal. Gostei muito da couve-flor assada com tahine, ervas frescas e cebola crocante e das almôndegas de borrego com iogurte de hortelã.
A carta de vinhos de baixa intervenção é curta, mas muito correta e a equipe é muito gentil (com brasileiros, na maioria, dominando a cena). Ah! E antes que me esqueça, a música é ótima.
Um lugar daqueles de bairro, para ir a toda hora. Longa vida ao Magnolia, mais uma linda flor na “minha” praça.
couve-flor assada com tahine, ervas e cebolas crocantes
almôndegas de cordeiro com iogurte de hortelã e pistaches
brioche de pescada com iogurte temperado, molho de shoyu e mel e wasabi crocante
Sou péssima fisionomista, terrível com nomes, mas jamais me esqueço do que comi ou bebi. Não falo isso com qualquer orgulho. Não serve para muita coisa, além de evitar que gaste um bom dinheiro em algo que não presta ou de ganhar mais peso (ainda) com comida ruim. Trocava por habilidades sociais mais úteis.
Era 2014 e estava num almoço de trabalho no Ferreira Café, um restaurante de comida portuguesa em Montreal, quando provei um espetacular Coche 2010, de Dirk Niepoort. Um bom vinho tem sempre a virtude de me calar (anotem, pode ser útil). Acho que é o momento em que minha cabeça desmemoriada se ocupa de achar a gavetinha de “informações a guardar, para sempre” e decide desligar as demais funções do meu corpo.
O primeiro gole abriu outro compartimento mental e lembrou de uma taça do Niepoort Navazos 2009 que bebi num menu degustação no extinto Oud Sluis, na Holanda, e decidi que um sujeito capaz de fazer ‘isso e aquilo’ merecia, sem dúvida, uma pesquisa mais profunda.
Desde Montreal, portanto, me encarreguei de conhecer absolutamente todos os rótulos da Niepoort que consegui encontrar, baratos ou caros. Talvez por isso, quando finalmente recebi Dirk e seu filho Daniel no meu restaurante, em 2018, eu exibisse um sorrisinho daqueles de terapeuta, como quem conhece os segredos do paciente. Foi um almoço adorável, feito dos belos vinhos levados por eles e, até por isso, de grandes silêncios de minha parte.
Edgar Alendouro, ótimo leitor de sedes alheias
Apesar da proximidade etílica com Dirk, fui parar na Cave Niepoort a convite de Nina, sua mulher, produtora de chás e personagem do último post, com quem estivera um dia antes. A ideia era ver as gavetas de secagem de seus oolong orgânicos e as pipas usadas de Porto que perfumam seu Pipachá, encerrando com chave de ouro a visita à plantação, no dia anterior.
“Edgar está pronto para lhe receber”, disse Nina.
Quando o portão se abriu, Marcela Lebl nos esperava diante de dois imensos tanques de aço com um astronauta e um foguete pintados, obra de João Noutel, um artista do Porto. E assim começou o tour às Caves Niepoort da Serpa Pinto, em Vila Nova de Gaia.
Enoturismo é um departamento novo na empresa; os armazéns e as velhas caves do século XIX só foram abertas à visitação no fim de 2021.
Mais que um passeio, é uma viagem no tempo que começa com aquele empilhado de barricas gigantes de todas as épocas sobre o chão de terra batida e desemboca no antigo escritório/laboratório da vinícola, lindo e congelado no tempo, com suas amostras, pipetas, notas e fotos da família pelas paredes.
No fundo, um grande salão cinza une o passado, no armazém com pé direito alto, paredes úmidas e janelas escuras e o presente, feito das prateleiras elegantemente iluminadas de um bar, sala de degustações e loja. Em vários nichos e estantes distribuídas pelo espaço, vinhos próprios ou de parceiros como a Equipo Navazos, além daqueles que importa com exclusividade da França, Alemanha ou Itália.
O bar/loja/sala de degustação
Cheio de ótimas intenções, lá estava Edgar Alendouro, antigo sommelier-fundador do Euskalduna (considerado como um dos melhores restaurantes do Porto), com passagem também pelo Mugaritz, que agora se encarrega das visitas técnicas, do clube de vinhos, da loja, dos chás e dos eventos privados da Niepoort.
– Que estilo de vinhos você gosta?, perguntou.
Falei “assim”o básico:
– De Portugal, vinhos de regiões mais frias ou Madeira… de resto: Borgonha, Piemonte, Jura, Jerez, sei lá…
– A vantagem desse espaço – disse Edgar – é que cada degustação pode ser única e adaptável ao gosto do cliente.
E é verdade. Afinal, a Niepoort tem de tudo, tanto de estilos quanto de regiões: faz coisas no Minho, Vinhos Verdes, Douro, Dão, Bairrada, Alentejo (sem mencionar os vinhos que produz fora de Portugal).
Ótimo leitor de desejos, Edgar começa a abrir coisas perfeitas. Poderia falar de várias delas (provamos dez), mas destaco algumas:
Vinhas Velhas Bairrada (Bical e Maria Gomes) 2018 – com nota oxidativa, é fresco, mineral, salino, com boa acidez e o solo de argila calcária mostrando ao que veio. As vinhas são velhas, de 80/90 anos e o vinho envelhece em foudres (de 1.000 litros) usadas por mais de 30 anos, do Mosel. Vinha os foudres, que equilibram a madeira num mundo que, infelizmente, ainda parece viciado nela!
O Ururabo (significa “flor”em Bantu), um vinho feito em botas antigas de Jerez. Produzido pela primeira vez em 2019, no Douro, é 100% gouveio (casta subestimada que funcionou perfeitamente bem para esse estilo de vinho). Vinificado com um branco normal, com a vantagem de ter desenvolvido a “flor” emprestada pela ‘bota’ (tonel de 500 litros) cedida por um amigo espanhol. Doze lindos meses com ela. Um vinho com muita fruta (viva a gouveio!) e complexidade.
Já tinha provado várias safras do Conciso (tinto), mas a 2019 foi uma das preferidas, com sua fruta vermelha fresca e nota floral. Feito predominantemente de baga e jaén é um glouglou de pura alegria. Ainda jovem, mas com futuro promissor.
A bateria do dia e marido ao fundo
Quando pensei que não era possível melhorar algo ótimo, foi.
Não se sabe ao certo o que levou o avô de Dirk a comprar os imensos garrafões esverdeados, de 8 a 11 litros, de uso farmacêutico. A hipótese mais provável foi a alta do preço do vidro, à época, daí ninguém ter pensado na evolução do vinho, e sim na economia: o jeito era engarrafar o maior volume de vinho no menor número de garrafas.
O lindo Demijhon do Porto que bebi
Nascia ali um estilo, inaugurado pela vinícola: os Garrafeira do Porto [que já existiam na Madeira, em vidros de 20 a 25 litros].
Os Garrafeira começam como um Porto estilo ruby (passando de 4 a 6 anos em pipas) e, ao final do estágio em madeira, são envasados na ‘demijohn’, o tal garrafão. Para a minha sorte e por incrível generosidade de Dirk, bebi um Garrafeira 1977 (feito em 1972) que abrira com amigos no dia anterior. Sim, um vinho de 50 anos no meu copo.
Garrafeiras são muito raros e caros (os da Niepoort, mais ainda) até porque só recentemente foram regulamentados. Para quem tem o Ruby como referência, garanto que esse é “outro bicho”; também frutado no aroma, mas bem mais aberto e mais fresco que os outros estilos, com ótimo equilíbrio entre fruta e dulçor. O gole daquele 77 veio cheio de damascos e figos secos. Um privilégio.
E não parou por aí.
Um dos cantos da adega
Descendo mais um nível, conheci um espaço ímpar reservado para os “N Collectors”, um clube de 872 membros admitidos por convite, que tem acesso a vinhos raros que podem ser degustados ali. O número é uma alusão ao ano de fundação da empresa e naquela seção da cave histórica, que abriga também uma linda coleção de abridores de garrafas da família, foi montada uma cozinha com equipamentos modernos (a turma do Mugaritz já cozinhou ali) para dar apoio às degustações conduzidas por Edgar.
De repente, um barulho de chaves pesadas e abre-se um portão: “Podem passar”. Era uma espetacular cave/museu com garrafas da família, incluindo uma das cinco demijohns Lalique, lindíssimas, representando cada uma das gerações da família Niepoort. Espiei um nicho cheio de garrafinhas gordinhas de um Colheita 1900, outro com uma de Porto 1869, todas cobertas de pó e umidade, intocadas, com direito à “angel’s share” – as marcas negras da evaporação do álcool das barricas ao longo dos anos – no teto abobadado.
Quando já estava ali naquele “céu”, Edgar apanha uma pipeta e me oferece a amostra de um barril. Era um porto branco 1968, que acabara de ser lançado, definitivamente o copo mais espetacular que bebi no ano, um nariz sóbrio, elegante, com nota cítrica na boca e adoráveis amêndoas e frutos secos de fazer chorar.
Morri? Não. Estou aqui para contar. Em que gaveta mental guardar todos esses vinhos? Num gavetão, meu caixão.
Para quem não teve a experiência que tive no dia anterior – os chás Camélia também podem ser degustados neste espaço num Wine & Tea Tasting.
Os vários modelos de visitas podem ser agendados [aqui].
E mais fotos e vídeos da Cave, no meu Instagram, [aqui]. Boa viagem!
A cada viagem que faço, procuro o “restaurante da esquina” ideal; uma espécie de gênio da lâmpada do meu estômago, que merecia morar sempre perto de casa.
Tombe a fome para saladas ou gordices, a ‘esquina’ está sempre lá, perfeita. Não tem rococós, pinguinhos calculados, esculturas comestíveis ou utensílios caríssimos; só qualidade. Ali, o serviço é eficiente e quase invisível, elucidativo sem ser afetado e, nem preciso dizer, a sala de estar da minha alegria orbita em torno do vinho.
O ponto já era ímã desde os tempos do Taxi Jaune, restaurante fundado em 1934 onde artistas e outras figuras de importância iam atrás da famosa carne de cavalo. Em lugares afetivos como esse, saudades não são facilmente substituíveis, mas não havia ninguém melhor do que Sarah Michielsen, com seus 20 anos de experiência (dirigiu o Gusto, também o Le Temps au Temps e conseguiu uma estrela Michelin no seu antigo Itinéraires) para comprar o antigo restaurante e ainda fazer o público voltar com força, fazendo do Parcelles um dos bistrôs mais queridos do momento, uma unanimidade em guias de todas as cores.
A passagem do ponto se deu no auge da pandemia (um bom momento para se livrar das amarras de uma cozinha estrelada). O movimento incluiu também a abertura de uma adega-épicerie do outro lado da rua, com patês, terrines, rillettes, além de um sotaque espanhol nos jamóns, morcillas e chorizos para levar, junto com uma ótima seleção de vinhos predominantemente orgânicos, biodinâmicos e naturais.
Aquela apreensão que me acomete a cada novo restaurante, passou na primeira espiada na prateleira ao lado: tinha um Selosse, um Cappellano, um Échezaux do Dujac, um Hermitage do Jean-Louis Chave… Pas mal. Apesar das garrafas-estrela, a carta de Bastien Fidelin tem vinhos para todos os bolsos, com a equipe preparada para conversas sobre harmonização ou estilos que combinam com cada cliente.
A comida de Julien Chevallier é a que chamam de “bourgeoise” (cozinha-conforto-caseira-de-classe-média) com apresentação descomplicada, mas que ali vem com segredos que fazem toda a diferença: um vinagrete de tozazu, aqui, um nabo japonês hinona kabu, ali. E os preços não assustam, para os padrões franceses: entradas e sobremesas em torno de 13 euros e principais em torno de 25, com a adição, todos os dias, de um prato vegetariano .
Fui de beterrabas com folhas de vinagreira, sabayon de estragão e meu adorado queijo de ovelha dos Pirineus: o tomme de brebis. Segui com um abraço na forma de repolho cozido recheado com porco de Clavisy, foie gras, pistaches e caldo de carne (invejei vieiras e mollejas vizinhas). Terminei com torta de figos de Solliès, que estavam na época, montados sobre uma base de mascarpone que me fez sentar no colo da avó francesa que nunca tive.
Não sei bem o que faz do restaurante um cenário agradável, talvez a rua histórica e calma, talvez a luz bonita que entra pelas janelas. Quem sabe a fórmula tenha sido não mexer no time que já estava ganhando no restaurante anterior: lindo balcão de zinco art-déco com um neon retrô acima do bar e, ainda, as paredes de pedra e mosaicos no chão do prédio do século XVIII.
Não bastasse tudo isso, tive ótima companhia (o melhor tempero que há). Sugeri o almoço certa que ia surpreender um casal de amigos que tudo conhece (Álvaro Loureiro e Pedro Figueiredo).
[os jardins do Castelo de Fontainebleau, grande alegria na pequena cidade]
Gostei dos pães da Boulangerie Dardonville e achei, com facilidade, a insubstituível manteiga Bordier. Havia boas loja de vinhos convencionais e outra ótima de vinhos naturais, adotei uma cafeteria com bons grãos etíopes e um outro canto, com chás. Há bistrôs corretos, queijos espetaculares, excelente confeitaria e, para a hora da saudade, boas pizzas e um bom japonês.
De resto, boas livrarias, umas galerias de arte, um teatro. Tudo numa cidade do tamanho de Ipanema. É claro. Há o onipresente “peru no pires” em forma de castelo, principal ímã turístico da cidade.
Passei bons dias em Fontainebleau, cidade em que todos vão aos fins de semana para Paris, inclusive meu filho, que agora estuda por lá.
Paris perde quase 11.000 habitantes por ano para cidades periféricas. Não é má solução, em termos de custo de vida. Casais jovens não acham mais imóveis para alugar na capital (viraram Air BnB) e moram mais tempo com os pais, antes de tomarem a decisão de viver pará lá e para cá, num trem.
As pequenas cidades se transformam, lentamente, e o adeus aos grandes centros me parece permanente.
Deixo aqui um pequeno guia cheio de afeto, (qualquer lugar onde o filho esteja é o melhor do mundo), para aqueles de passagem.
RESTAURANTES
L’AXEL – Apesar do tamanho de Fontainebleau, coube uma estrela Michelin da cidade. Num pequeno salão intimista e agradável, Kunihisa Goto serve ostras da bacia de Marennes Oléron com emulsao de frutas exóticas, mexilhões de Bouchot do Mont St Michel com curry feito de feijão branco (coco de Paimpol), uma deliciosa vichyssoise de bacalhau e um bom pombo com beterrabas, figos da época, vinagrete de framboesa e cogumelos chanterelles. A carta e o serviço de vinhos foram excelentes.
GINA – o restaurante italiano, recém-inaugurado (setembro de 22) fica no Hotel La Demeure du Parc, onde tive a sorte de me hospedar (ótimos quartos e serviço). O salão é talvez um dos ambientes mais agradáveis e o menu italiano tem alguns itens cenográficos como uma porchetta imensa, costeleta à milanesa gigante e tal, que causam impacto no serviço feito pela equipe de salão. Gostei particularmente de um menu degustação em torno de frutos do mar. O serviço é simpático e o menu de almoço, apesar de enxuto, tem clássicos eficientes. A casa tem ótimos drinks, mas a carta de vinhos tem rótulos e regiões mais comerciais e com margens “de hotel”.
FUUMI – Tive vontade de voltar. Além dos peixes mais frescos da cidade e um arroz de alho assado que comi compulsivamente, comida japonesa quente de muita qualidade brota do balcão do chef Kenta Iyori, que se ocupa da chapa. Do fogão, um espetacular chawanmushi de bonito e shiitake com alho poró, caranguejo desfiado e camarões de Madagascar. Cobicei ramens vizinhos… Ótimo junmai dai-ginjo Sho Chiku Bai (Shirakabegura) da região de Hyogo, na Ilha de Honshu. O restaurante foi criado por Kunihisa Goto, o chef do vizinho L’Axel, a estrela Michelin da cidade.
LA PETITE ARDOISE – um verdadeiro bistrô, para momentos de comida clássica com foco na procedência dos ingredientes, como os escargots de Pampfou, ovos da Fazenda Laveau 77, coisa e tal. O foco é bem local e, até por isso tem queijos, muitos queijos, numa rua que apelidamos de “A Dias Ferreira” de Fontainebleau.
ANTICA TRATTORIA – um dos restaurateurs mais bem sucedidos da cidade (Enrico Einaudi) estudou no Insead, uma das melhores escolas de negócios do Mundo em torno da qual a cidade também orbita (e meu filho estuda, pausa para uma propaganda nada subliminar). Largou o trabalho de controladoria na cidade grande e decidiu abrir vários restaurantes por ali. De sua Trattoria brotam imensas filas em torno de boas massas, pizzas e um serviço eficiente e simpático.
LE FRANKLIN – não esperava muito da casa com jeito de bar na esquina noturna mais animada da cidade, mas a taberna com comida da região de Aveyron, no sul da França, estava bem gostosa, dentro de um espírito bem carnívoro e de embutidos e gordices como aligot, foie gras e tal. Pedi uma salada para disfarçar a gula, e estava boa.
LE PATTON – gostei especialmente da construção, uma mansão do século XIX que conta com uma varanda coberta muito agradável para almoço ou jantar, com a vista do jardim nos fundos. A ideia, desse restaurante que já tem 12 anos de idade é guardar o espírito da casa que já está na família há 4 gerações. O menu do dia foi boa opção e tinha boudin noir, que não costumo recusar. Tem um jeito (no almoço) de business account.
LE SOMMELIER DU CHÂTEAU – o foco fica na varanda agradável e seus vinhos, que podem ser acompanhados de tapas e outros. Lá dentro, a cozinha é criativa, com ingredientes mais leves que muitos vizinhos (carpaccio de vieiras com maracujá, baunilha e limão ou aspagos grelhados com bottarga e pesto de ail des ours, o alho-selvagem), mas um pouco demorada.
BISTROT DES AMIS – do mesmo dono da Antica Trattoria, o lugar tem a vantagem de estar aberto em dias e horários ingratos e isso (acreditem) vem bem a calhar para um passante. Comi bons ceviches que, pela tradição da região e estranhamento dos brasileiros, sempre levam muitas frutas e flores. Achei algo que adoro: a muxama de atum (fatias finas de atum curadas, como um presunto) que ali vinha com amêndoas, uma das especialidades da casa.
PADARIAS E CONFEITARIAS
BOULANGERIE DARDONVILLE – Era dela a cesta de pães servida no meu hotel e também os reencontrei em alguns dos melhores restaurantes da cidade. Provei de vários grãos, tamanhos, preparações, tanto doces quanto salgadas, com ótima qualidade.
SUZY ET ARLETTE – Descobri que a padaria ganhou o concurso da região do Seine et Marne na categoria pain au chocolat (para quê, meu bom Deus?), mas também adorei outros tantos itens de confeitaria, para a infelicidade dos meus quadris. Tudo delicioso, além do atendimento alegre e divertido.
L’A PÂTISSERIE – KG – sem dúvida, a melhor confeitaria da cidade, pela qual me apaixonei na casa da amiga residente e gourmet Mariana Schapira. Há doces divinos como o de creme de amêndoas com yuzu ou o crocante de caju com frutas vermelhas.
CAFÉS ESPECIAIS
PAUL ET PAULETTE – Há uma boa loja com grãos para quem tem cafeteira em casa. Como não era meu caso, e depois de muito procurar, bati ponto nessa adorável cafeteria, para lattes, expressos e filtrados, com grãos variados de ótimas procedências. Atendimento muito simpático dos proprietários.
CHÁS
CHEZ ELEMIAH – é um salão de chá com comidinhas lindas veganas que não cheguei a provar. Foquei na bebida que tomava antes ou depois de um giro na galeria de arte, à côté.
QUEIJOS
LES TERROIRS DE FRANCE – não se deixe levar por vitrines mais ordenadas, aqui há um mestre queijeiro (a terceira geração na família) que explica com cuidado e carinho cada tipo de queijo e seu momento. Excelente seleção. Não esqueçamos que a região (Seine et Marne) é a terra do queijo brie e do menos conhecido (mas não menos delicioso) coulommiers, de massa mole e feito com leite de vaca. “Fica a dica” e o encantamento com a loja de Christophe Lefebvre e sua mulher.
VINHOS
VIVAVINO – passei por diversas lojas (não necessariamente impressionantes) de vinhos convencionais, mas me encantei, mesmo, pela seleção e atendimento dessa pequena loja de vinhos naturais, que serve comida aos fins de semana. Ótima escolha de produtores e atendimento. Convém chegar cedo se a ideia é sentar num dos 8 ou 10 lugares da casa. Os sócios conhecem profundamente os produtores e seus vinhos.
Quando pequena, fiz aula de equitação. Tempos curiosos, aqueles…
Meus pais, orgulhosos, ganhavam elogios ao mostrar a foto da filha lindinha, toda fantasiada com calças de culote, capacete, bota, luva, paletó e chicote de couro. Eu, ganhava os tombos.
Mabrouk era espetacular e nosso amor foi lindo, enquanto durou. Gostava de alisar sua crina e dos dentões que arreganhava enquanto mordia os torrões de açúcar em minhas mãos. Me sentia invencível naquele trote flutuante ao dar voltas pelo picadeiro enquanto fazia os exercícios de ritmo, respiração e solidez sobre a sela.
Tudo parecia perfeito, até que o infeliz latido de um cachorro ou a buzina inesperada de um carro faziam o bicho lembrar que era um cavalo de salto e se esquecer de mim. Mabrouk relinchava, sacudindo a cabeça, desviava da rota, partia para o meio do campo num galope enlouquecido e wooooooshhhh, saltava um obstáculo.
Nas 15 vezes em que algo o assustou, eu caí. Meu orgulho se limitava a tentar despencar um pouco mais adiante, depois do terceiro ou quarto salto, mas não tinha muito jeito. Foi curta a minha carreira no hipismo. Ao menos, acabou antes que Mabrouk me matasse.
Mesmo coberta de hematomas, não contava nada em casa. Foi tudo bem na aula? Foi.
Vocês podem me achar esquisitinha, mas no dia em que resolveram trocar meu cavalo, parei com o treino.
Para evitar lembranças masoquistas, evitei cavalariças desde meus 11 anos de idade, até que encontrei as de Comporta.
O site do hotel em que ficamos trazia algumas comparações para “situar” os clientes: Comporta é como “os Hamptons dos anos 70, St.Barth dos anos 80, José Ignacio dos anos 2000”. Sinceramente, achei a cidade bem mais pé no chão, com mais qualidade e menos afetada que todos os lugares citados. Talvez José Ignacio seja o espírito mais parecido em tamanho, proposta e público.
Já tinha lido sobre o restaurante situado nas antigas cavalariças da cidade e, se havia algum desejo gastronômico em mim, era o de conhecer aquele lugar.
O espaço era lindo, claro, com pé direito alto e janelas de madeira colorida. Nos vãos generosos das antigas baias pintadas de branco ficavam as mesas maiores.
Dizem que famoso por lá é o prato de frango, mas como estava entre amigas loucas por vegetais, fizemos um belo desvio nessa direção.
Não sei dizer o que estava melhor: o pão magnífico (tão bom quanto a manteiga curada e o azeite que o acompanhavam); as croquetas de ombro de porco com maionese de mexilhões e semente de mostarda; a abobrinha orgânica sobre queijo de soro de leite com manjericão; a couve flor assada na frigideira com couve sauté e vinagrete de alho-poró; o divino roll de legumes em folha de repolho e hoisin de amêndoas; o tempurá de couve com cebola e hummus de feijão branco ou a cenoura defumada com creme de amêndoas assadas e laranjas sanguíneas. Tudo excelente.
Então, a nota triste:
Ninguém vai lhe avisar, no momento da reserva, que à noite não circulam mais táxis em Comporta (eram quase 23hs quando terminamos o jantar e ficamos três mulheres ligando para a única cooperativa de taxis da cidade, sem nenhum apoio da casa, do lado de fora). Para evitar aborrecimentos, recomendo fortemente arranjar de antemão o transporte da volta.
Eu devia ter previsto que, numa cavalariça, a história só podia terminar com um tombo. Doeu, como doíam os da infância, mas continuo esquisitinha… e volto.
Esse post tem uns 6 meses de atraso, assim como tantos outros entalados na ponta dos dedos numa espécie de artrose literária. Culpa da peste.
Passei alguns meses em Manhattan, no ano passado, por motivos diversos. Num surto de otimismo inabalável que durou uns cinco minutos e meio, tive certeza de que a tudo voltaria ao normal e rechearia este blog com inúmeras recomendações, mas não foi bem assim…
Viagens ainda não eram permitidas, a Covid andava pelas esquinas e o mundo caminhava de máscara.
Apesar da vida, essa teimosa, continuar acontecendo apesar do medo, recomendar restaurantes no exterior me pareceu um troço besta e anacrônico, a despeito de ter conhecido alguns que gostaria de revisitar em tempos menos dramáticos.
Ainda assim, foi falando de viagens e restaurantes fora do Brasil que esse quadrado nasceu há mais de 20 anos (antes bazzarfood.blogspot, depois crisbeltrao.blogspot) e sempre me alegra receber comentários animados dos leitores com dicas que dei. Além do mais, já que o câmbio, aquele mal-amado, não dá chance ao acaso, leio uma penca de jornais, revistas e a opinião de gente respeitada só para garantir uma refeição decente sem penhorar um rim. Se você teve a sorte de viajar, estamos aqui para ajudar.
O que anda me encantando?
Refeições simples, ambientes nada pomposos e provar várias coisas pequenas acompanhadas de um bom copo de vinho. Pois tinha tudo isso no LaLou, no Brooklyn.
O lugar é feito de uma tripa de mesas – gostosa e barulhenta – que fica diante de um bar que emenda na cozinha e termina num jardim coberto, ao fundo, para quem quer mais paz e distância entre as mesas. Naquele ambiente espartano, confesso que não esperava aqueles vinhos ou aqueles pratos.
Fui investigar. A casa é de Joe Campanale, sommelier respeitadíssimo que teve passagem pelo Babbo, é autor de “Vino, The Essential Guide to Real Italian Wine” e, ainda por cima, decidiu fazer vinho na Campania. Nada mal. Apesar de tanto pedigree, a equipe consigue explicar lindamente a carta que tem grande foco em Itália, França, Áustria e outros cantos adoráveis, sem muito blá blá blá. A foto foi do Ganevat pra contar vantagem, mas passeei por outros copos caros ou baratos com a mesma entusiasmo. Belo trabalho.
A alegria não pára nos vinhos, mas não espere exatamente um cardápio. Há meia dúzia de pequenos pratos com ingredientes excelentes, a começar pelo couvert. Vibrei com os pães e, também, com a enguia defumada com feijões brancos e caldo feito da carcaça do peixe. Mas incontornável, mesmo, foi o nada fotogênico repolho chamuscado com pasta de damascos, Jerez e um delicado molho de queijo azul Stilton. Tive vontade de pedir uma dúzia.
Recomendo em noite despretensiosa povoada por desejos etílicos depois de uma visita ao Brooklyn Museum (são 16 minutos a pé).