Travessuras ou Gostosuras?

O Halloween é muito mais nosso do que supunha a minha cabecinha de abóbora.

Nosso dia de Finados é uma depressão só, feito de choradeira e romaria em cemitérios. Não à toa, invejamos os rituais dos outros.

Meu pai, morto há 22 anos, costumava dizer: quando o assunto for triste, minha filha, faça em ritmo de samba, que é melhor. Daí a minha vontade de importar o ‘Dia de Los Muertos’ mexicano, no lugar de Finados. A celebração por lá é das nossas, carnavalesca e feliz, com danças nas ruas, caveiras coloridas e comida de verdade em homenagem a quem se foi.

Dia desses, me senti uma extra-terrestre numa superprodução hollywoodiana, cheia de gente fantasiada de Freddie Krueger, Pennywise ou Chucky, brincando de “travessuras ou gostosuras”. Felizmente, havia gin. Não sou nenhum Policarpo Quaresma, mas implico aqui e ali com a adoção de ritos distantes demais da nossa cultura e não consigo aderir.

Para conter impulsos xenófobos, sempre penso na comida de fundo. Afinal, todos sabemos que o melhor do Halloween sempre foi a abóbora: mea curcubita, mea maxima curcubita.

Só que a abóbora brilha no Outono e seu uso faz mais sentido no Hemisfério Norte. Nossa festa emprestada acontece em época errada, com a bicha feia, seca e, ainda por cima, cara. É só mesmo um “cabeção” perdido na Estação. Convém importar tradições que venham com legumes na hora certa para o preço da escultura não estar sempre pela hora da morte (com o perdão do trocadilho).

Uma variedade que vinga quase o ano inteiro é a cabotiá ou kabocha, a abóbora asiática de casca verde. Poucos sabem, aliás, que seu batismo aconteceu quando chegou ao Japão pelas mãos de comerciantes portugueses. Eles vendiam “abóbora do Camboja” e os japoneses a compravam com sotaque: “cabotiá”. Apesar de ótima no mês de outubro, até hoje não vi ninguém disposto a esculpir cabeças verdes no Halloween. Fica a dica econômica de tentar reproduzir o rosto do Coringa, o terror da vez.

Retomando o assunto, foi no México que conheci o “pan de muerto”, delícia em formato de crânio e ossos, feito com raspas de laranja. Se come no próprio dia de Finados e ao longo das festividades que podem durar semanas, dependendo da região. Fora da capital há outras versões, feitas com gergelim, com chocolate, com dedicatória especial para o defunto, ou ainda recheadas com caveiras, a exemplo da rosca de Reis. Em Oaxaca, o pão vem com uma figura humana feita de açúcar, que representa a alma do homenageado. Por mais macabro que seja, acho bonita a ideia de “incorporar” um pouco de quem foi através da comida, engolida com o espírito em festa.

Segui na divagação ranzinza, importando caveiras, quando me deparei com a história do Coco, mito de origem portuguesa e galega.

O Coco é um fantasma que nos vigia do alto dos telhados, com interesse particular pela desobediência infantil. Devora crianças difíceis e malcriadas ou as que não querem comer ou dormir. Seu batismo vem mesmo de crânio, “cocoruto” e, desde o século XV em várias regiões de Portugal (Coimbra, Beira Alta e Minho, entre outras), abóboras ou cabaças iluminadas representam a assombração que também atende por Coca. Enfim, o folclore não está tão distante.

Ainda em Portugal, a Coca é parte do ritual chamado de “pão-por-Deus”, que acontece em 1º. de novembro. Nesse dia, as crianças saem à rua batendo de porta em porta, pedindo o bolinho e outras guloseimas preparados para alimentar as almas queridas, que lhes visitam à noite na forma de borboletas ou pequenos animais. É nossa versão de “gostosuras ou travessuras”, que também adotamos desde o Brasil-Colônia. O pão-por-Deus em Florianópolis, por exemplo, leva o nome de “finadinho”.

Em outra de suas versões, já na Espanha, o Coco teria corpo de tartaruga e chifres ao longo da coluna, com garras e cabeça de dragão. Lembram de alguém? Pois é. O mito se espalhou no Brasil com os primeiros colonizadores, e a Coca virou nossa querida Cuca, popularizada por Monteiro Lobato.

Enfim, Halloween é quase tupiniquim.
E que todos os queridos finados sejam muito bem lembrados.

[texto feito para a Revista Época, em Halloweens passados]

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