O Hotel e a fábrica de burel

Manteigas no nevoeiro

“Como não me apaixonar por um lugar chamado Manteigas?”

Disse a frase logo que pus os pés na pequena vila portuguesa, na Serra da Estrela, sob a premissa falsa de que se trataria de um batismo vindo da comida. Não foi.

Ali, se produzia pequenas mantas, mantecas. Daí a virar Manteigas, foi um pulo.

Passeando de jipe pela Serra, cruzei com um pastor adolescente, muito entediado, é claro. Afinal, o pastoreio foi atividade que perdeu muito interesse ao longo dos anos. Que diabos estou fazendo aqui no alto, cuidando de um bando de animais, sem folgas ou sinal de telefone?

No passado, o pastoreio e o esforço hercúleo de criar aqueles socalcos com a enxada para viabilizar a agricultura nas montanhas era a única forma de pôr pão na boca das famílias que moravam no alto da Serra da Estrela, já que as terras baixas eram dos ricos. Havia opção? Não. Hoje, poucos parecem querer abraçar essa vida.

Amigas daquela gente, mesmo, eram as ovelhas bordaleiras que transformavam os pastos cheios de ervas secas em leite, carne, lã e adubo. Para proteger do frio, chuva, neve ou calor enquanto acompanhavam as bichinhas, lá estava a manta de BUREL pendurada no ombro dos pastores, um tecido impermeável, muito resistente e barato, usado desde o século XI.

O antigo burel, de preto, branco e bege – as cores da lã das ovelhas – hoje tem padrões, formatos e cores lindos

Para quem não sabe, escolher e fiar a lã, colocar os fios um a um no tear, juntar a teia e a trama para depois prensar o tecido é a atividade artesanal mais antiga de Portugal.

A crise de 2008 levou ao fechamento sucessivo de quase todos os lanifícios da região, mas Isabel Costa e João Tomás viram ali uma oportunidade. O casal comprou a antiga fábrica Império, já em processo de insolvência, e fez dela a Burel Factory que preservou a história, modernizou os processos, criou estampas, objetos de decoração e hoje exporta para vários países lindas peças em burel feitas com preceitos sustentáveis.

Aí vem a grande confusão: agendamos uma visita à Burel Factory no hotel e acabamos na Ecolã, uma fábrica super colada, ao lado. Na entrada, informamos que a visita tinha sido agendada e ninguém nos disse que estávamos no local errado. Tudo foi muito bonito e a visita, muito agradável, mas… não é? Quem for na certa, me conte.

Além do lanifício, a família é dona dos hotéis Casa das Penhas Douradas e da Casa de São Lourenço, onde me hospedei. E foi lá, da varanda do meu quarto e aquecida pela minha manta quentinha de burel, que avistei o cobertor denso de nuvens deitado sobre a pequena Vila de Manteigas.

O Salão da Casa de São Lourenço

Quem me conhece sabe que não ligo para SPAs ou frescuras; meu maior interesse é e, sempre será, comida boa e com identidade local, de preferência com boa carta de vinhos. Tinha tudo isso, ali. Uma cozinha de montanha com muita qualidade e pouca invencionice (graças a Deus!).

Do café da manhã ao jantar, tudo no restaurante da Casa de São Lourenço, com vista espetacular debruçada sobre a Manteigas, foi muito bom: houve uma profusão de bolos, pão de centeio, ótimos iogurtes do leite denso dali, baldes de queijo Serra da Estrela e outros tantos de cabra e ovelha; também comi uma salada de beterrabas com aspargos frescos, pinhões e mentrasto que ficou na memória; uma truta de Manteigas que vinha crocante e empanada com escabeche, cenourinhas avinagradas e a típica broa de milho; um caldo aveludado de castanhas com fio de vinho do Porto que estava tão delicioso que fiz questão de repetir; e um cabrito de Campo Romão (então!…) que vinha com arroz pingado de assadeira, caldo defumado e o tradicional esparregado. Todo o cardápio muda de acordo com as estações, como deve ser, e o chefe de sala e sommelier José Reis soube me orientar nas escolhas dos vinhos locais que não conhecia.

Cabrito de Campo Romão com arroz pingado de assadeira, caldo defumado e o tradicional esparregado

Não soube escolher entre as delícias de Manteigas e a beleza das “mantecas”. Só sei que o programa casado, sem dúvida, vale a viagem.

A visita à Ecolã não requer marcação.

Veja mais sobre o hotel Casa de São Lourenço [aqui].

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Uma viagem feita de coisas que não fiz

Castelo “inventado” de Folgosinho

– Tá vendo aquela ovelha? É a mais velha, tem o chocalho maior. Em breve, vira chanfana.

– Porcos? Antigamente não havia aqui no topo simplesmente porque não pastam. Disputavam a comida com a gente e o suprimento aqui no alto é escasso.

– Sabe aquela única árvore no meio dos arbustos? Quando há um verde mais vivo ou árvores é porque ali existe uma linha d’água. Aquele rio que não tem nome porque não dura: no Verão está seco, no Inverno corre água.

– A planta que cresce primeiro, logo após um incêndio, é o “feto”. E fetos são dourados.

Falar com a gente dali e aprender pequenas coisas ajuda a entender a Serra da Estrela. “Não vá no Inverno, especialmente depois dos incêndios!”, me disseram. Pois fui, a filha queria ver a neve, que não compareceu. E daí? Adorei. É boa época para ler entrelinhas e entender as dificuldades históricas, quando a vegetação exuberante não ofusca todo o resto.

Claro que deve ser lindo o lilás das urzes e o amarelo e branco das giestas, na Primavera. Dizem que o Outono no Covão d’A Ametade é espetacular. Não vi nada disso. Bastou eu sair de lá, aliás, para cair o primeiro “nevão”. Ao que parece, Folgosinho coberta de branco ficou um encanto.

Não se sabe ao certo qual foi o rei de Portugal (Afonso Henriques ou Sancho I) que teria dito: “Descansemos aqui e vamos tomar um folgosinho de ar”, daí o batismo da aldeia. A lenda varia, mas não importa; essas folgozices fazem a graça de Portugal.

Nos dois dias em que lá estive, logo depois do Natal, ainda ardiam os “madeiros”, tradição antiga nas aldeias e uma espécie de rito de passagem para a idade adulta: os rapazes, no último ano antes de cumprirem o serviço militar deveriam subir a serra e buscar os troncos de carvalho ou azinheira mais grossos que achassem e levar até o adro da igreja ou praça maior, na noite de Natal. As meninas se encarregavam de enfeitar carroças e bois com fitas e flores. Como esse tipo de madeira costuma queimar por vários dias, a roda virava ponto de encontro dos jovens.

Era dia 27 e o monte de lenha queimada, perto da hora do almoço, abria o apetite.

A ideia era comer n’O Albertino, lugar simples de comida típica (queijo de ovelha, cabritos, javalis, arroz doce e tal). Acreditem se quiser, por 19 euros se faz a farra com 3 entradas, 4 pratos e mais 3 sobremesas, com vinho da casa e pão. Eu juro. É muita comida. Adorei tudo que espiei ali, mas estava lotado.

O Albertino fica estacionado na minúscula praça, lindinha, que estava ainda mais prosa naquele dia com as fitas de crochê coloridas enroladas nos troncos e umas bolas de Natal, de palha crua ou pintadas de vermelho, penduradas nos galhos. Aliás, quase não encontramos vaga na aldeia porque uma dúzia de carros ocupava todas as disponíveis. Nunca esteve tão cheia – disseram – é o turismo! E apontaram para umas placas em inglês aqui e ali pelas casas, oferecendo quartos.  

a melhor versão de árvore de Natal que já vi

Decidimos que o almoço ia virar piquenique.

Além daquele desenho comum às aldeias vizinhas, feito da igreja, pracinha, lojinha e uma tripa de casas à volta, Folgosinho tem um castelo “inventado”, um castelo de ninguém. Na verdade, parece uma torre vigia. Dizem que Viriato, herói da Lusitânia no tempo dos romanos, teria lançado as primeiras pedras para poder avistar o perigo de longe. Dizem…

Partimos para Sabugueiro que nos recebeu com a placa “a aldeia mais alta de Portugal”. Há pelo menos duas outras que disputam o título, mas o importante é que ali, todos acreditam.

Paramos no Café Estrela d’Alva, que ninguém chama assim. É a “Casa das Marias”, da Maria de Lourdes, mãe, e da Maria, filha. A loja tem toldo verde e letreiro “bom queijo – presunto – enchido” com adesivos coloridos pregados no vidro, além das peles e moletons na entrada que dificilmente me atrairiam, não tivesse sido levada por um amigo que jurou que ali acharia o serviço mais simpático das aldeias. Não mentiu.

Lenço na cabeça e vestido longo preto, D.Maria de Lourdes é uma aldeã caricata de bochechas rosadas, tão idosa quanto simpática, que me alimentou sem parar. Seguindo a minha filosofia de que comer em pé não engorda, aceitei tudo sem qualquer resistência: licor de sabugueiro, de medronheiro, ginjinha, chouriço, paio… Entre um naco enfiado em minha boca e outro, tombei de amores pelo Serra da Estrela Velho.

O queijo da Serra, feito de leite cru de ovelhas da raça bordaleira ou Churra Mondegueira, sal e cardo, vocês já conhecem, mas nunca tinha provado o “Velho” [adoro a falta de sutileza], que é maturado por mais de 120 dias.

A casca não é boa de comer, mas linda de ver, feita quase sempre com colorau e azeite. O que comi tinha uns 150 dias. O odor era intenso, o sabor forte, a textura era macia e quase nada granulosa. Era frutado e um pouco picante, por isso se serve com alguma compota ou fruta fresca para limpar o palato e o “punch” do bicho. Levei dois.

Comprei também os típicos BISCOITOS DE AZEITE, que têm gosto de bolo branco comum com açúcar cristalizado em cima, com a surpresa de levar aguardente na massa. O MEL DE URZE, também indispensável, é feito do arbusto abundante na região. Denso, viscoso e escuro e tem um fundo amargo, como já notei nos méis de outros arbustos de regiões bem secas. O LICOR DE SABUGUEIRO, que batiza a aldeia, é muito aromático e delicioso. Levei também, claro, além da ginjinha feita ali na Serra. Só não levei D.Maria de Lourdes “coisa-mais-doce” comigo, porque a filha ficaria enciumada.

Catamos uma cesta de piquenique no hotel e juntamos aqueles achados a outros típicos dali: um Quinta da Passarella A Descoberta, uns enchidos, uma geleia de CEREJAS DO FUNDÃO – as preferidas em todo o mundo – um PÃO DE URTIGA e paramos para o piquenique diante da barragem e junto às dez capelas que compõem o Santuário de Nossa Senhora do Desterro (erguidas ao longo de mais de 200 anos – entre 1650 e 1892) nas margens do rio Alva.

Afinal, não teve neve, não teve o restaurante na aldeia, sei lá se Viriato viveu em Folgosinho e Sabugueiro não é a aldeia mais alta, mas tinha todos os motivos para levantar as mãos para o céu e agradecer.

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Um Bolhão e uma Beltrão

Fui cutucada para fora da cama por um fuso trocado. Olhei o relógio sem qualquer preguiça e caminhei, pantufa e robe do hotel, até a sacada ainda molhada pela tempestade do dia anterior. Esperava o frio muito frio do Norte, mas senti gostosos 13 graus enquanto a (ainda) noite das 7:15hs se transformava em dia, pontualmente às 7:29 da manhã, com um coro de gaivotas anunciando a transição.

A vista é “brutal!”, me disseram. E era.

O Porto é mesmo lindo.

Não foi uma ou duas vezes que ouvi de amigos que moram por lá: “mas a Cristiana nunca vem aqui?”. Burramente, brasileiros têm a memória de distâncias muito grandes entre Norte e Centro Sul, mas são três horas que voam, especialmente para quem lê ou trabalha, no trem veloz que parte de Lisboa. Com wifi decente, carro restaurante e vista, me perguntava por que nunca tinha ido antes.

Mercado do Bolhão

Aliás, faria a viagem de novo e com gosto só para caminhar por entre as barracas e placas ‘mui ordenadas’ do MERCADO DO BOLHÃO, que funciona na Baixa desde 1839, quando ainda era um mercado de rua aberto. Naquele tempo, era zona enlameada atravessada por um regato que, bem ali, teimava em formar um…bolhão de água (eureca!). Desde 1924, com a Câmara Municipal tentando organizar a bagunça, é estrutura fechada, pavimentada, limpa e bem iluminada, com cobertura das galerias e tal.

“Maria do Álvaro”, “Temos Lata”, “As Irmãs Araújo”, “Inês das Plantas”, “Salsicharia Lindinha”, “Rosinha Florista”… As barracas são poesia auto-explicativa e conseguiram arrancar um sorriso a cada parada. Além da venda de grãos, frutas, legumes, carnes e peixes, embutidos, flores ou conservas, come-se muito bem por ali, em mesinhas espalhadas pelas laterais com direito a cerveja, copo de vinho e o melhor ponto final que conheço: a doçaria portuguesa.

Salão do Euskalduna

Quando marquei a viagem ao Porto, assim meio de surpresa, recorri aos amigos da área. Três deles me indicaram o EUSKALDUNA como melhor restaurante da cidade que, aliás, acaba de ganhar sua primeira estrela Michelin. A casa é feita de um balcão de 12 lugares e duas mesas de 4. Tudo muito bom, mas convém estar preparado para as quase 4 horas do menu de 10 passos. Dentre todos, uma lula gigante dos Açores que ganhou meu coração. Na base, os tentáculos em creme feito com arroz koji, echalotas e malagueta; o corpo vem no centro com uma espécie de beurre blanc feito com vermute no lugar do vinho branco e, por fim, um pó de tinta de choco e a raspa de um cítrico japonês. Recomendo fortemente a harmonização feita de vinhos menos tradicionais de pequenos produtores e gostei particularmente do espumante rosé de pinot noir da Quinta do Rol, 7 anos sobre as borras. Perlage delicinha. Essa vinícola de Lourinhã, aliás, é famosa por suas aguardentes de fazer inveja a qualquer Cognac (mas esse é outro texto).

Lula e Nage era o nome do prato perfeito

Salão do Almeja

Perto do Bolhão e para quem quer uma ótima cozinha à la carte, recomendo fortemente o ALMEJA (dica de Miguel Pires), estacionado naquele ponto perfeito entre o gourmet e o gostoso, em geral tidos como rivais. Não são e ali se pode provar. Tudo bem feito, elegante e bem montado, mas provoca algo mundano de “quero mais”.

Cabeça de Xara muito delicada – queria comer três

Todas as salas são acolhedoras de um jeito simples e retrô, mas fiquei no salão mais claro, ao fundo, que prometi revisitar no Verão. O menu e carta de vinhos são curtos, mas precisos. Tudo que provei (6 pratos porque, claro, ataquei o do vizinho…) estava delicioso. Destaco a tosta de cabeça de xara, escabeche e maçãs, linda e equilibrada. Em seguida, um imperdível arroz de cabrito e miúdos, cheio de colágeno, daqueles feitos com um caldo impecável, de estalar a língua. Para terminar, o bolo de tangerina com creme de limão, granizado de kalamansi (um cítrico do sudeste asiático) e soro de leite. Leve e ótimo, generoso, divertido. Uma pausa dramática para dizer que há outros dois menus de almoço, sendo que um deles custa 9,90 euros – espiei e parecia delicioso. O serviço de sala foi impecável (mérito de José Pedro): eficiente, discreto, mas também muito bem-humorado. Aliás, toda a gente do Porto é imensamente gentil.

Arroz de miúdos e cabrito – uma delícia

E assim terminou mais um dia feito de Bolhão, comilança e Beltrão com a (já) saudade embarcando comigo, na estação. Rimei.

https://mercadobolhao.pt/

http://www.euskaldunastudio.pt/

https://www.almejaporto.com/

Veja mais fotos do Bolhão e dos restaurantes, no destaque do Instagram [aqui].

A parcela dos anjos e a outra, dos nem tanto

Sou péssima fisionomista, terrível com nomes, mas jamais me esqueço do que comi ou bebi. Não falo isso com qualquer orgulho. Não serve para muita coisa, além de evitar que gaste um bom dinheiro em algo que não presta ou de ganhar mais peso (ainda) com comida ruim. Trocava por habilidades sociais mais úteis.

Era 2014 e estava num almoço de trabalho no Ferreira Café, um restaurante de comida portuguesa em Montreal, quando provei um espetacular Coche 2010, de Dirk Niepoort. Um bom vinho tem sempre a virtude de me calar (anotem, pode ser útil). Acho que é o momento em que minha cabeça desmemoriada se ocupa de achar a gavetinha de “informações a guardar, para sempre” e decide desligar as demais funções do meu corpo.

O primeiro gole abriu outro compartimento mental e lembrou de uma taça do Niepoort Navazos 2009 que bebi num menu degustação no extinto Oud Sluis, na Holanda, e decidi que um sujeito capaz de fazer ‘isso e aquilo’ merecia, sem dúvida, uma pesquisa mais profunda.  

Desde Montreal, portanto, me encarreguei de conhecer absolutamente todos os rótulos da Niepoort que consegui encontrar, baratos ou caros. Talvez por isso, quando finalmente recebi Dirk e seu filho Daniel no meu restaurante, em 2018, eu exibisse um sorrisinho daqueles de terapeuta, como quem conhece os segredos do paciente. Foi um almoço adorável, feito dos belos vinhos levados por eles e, até por isso, de grandes silêncios de minha parte.

Edgar Alendouro, ótimo leitor de sedes alheias

Apesar da proximidade etílica com Dirk, fui parar na Cave Niepoort a convite de Nina, sua mulher, produtora de chás e personagem do último post, com quem estivera um dia antes. A ideia era ver as gavetas de secagem de seus oolong orgânicos e as pipas usadas de Porto que perfumam seu Pipachá, encerrando com chave de ouro a visita à plantação, no dia anterior.

“Edgar está pronto para lhe receber”, disse Nina.

Quando o portão se abriu, Marcela Lebl nos esperava diante de dois imensos tanques de aço com um astronauta e um foguete pintados, obra de João Noutel, um artista do Porto. E assim começou o tour às Caves Niepoort da Serpa Pinto, em Vila Nova de Gaia.

Enoturismo é um departamento novo na empresa; os armazéns e as velhas caves do século XIX só foram abertas à visitação no fim de 2021.

Mais que um passeio, é uma viagem no tempo que começa com aquele empilhado de barricas gigantes de todas as épocas sobre o chão de terra batida e desemboca no antigo escritório/laboratório da vinícola, lindo e congelado no tempo, com suas amostras, pipetas, notas e fotos da família pelas paredes.

No fundo, um grande salão cinza une o passado, no armazém com pé direito alto, paredes úmidas e janelas escuras e o presente, feito das prateleiras elegantemente iluminadas de um bar, sala de degustações e loja. Em vários nichos e estantes distribuídas pelo espaço, vinhos próprios ou de parceiros como a Equipo Navazos, além daqueles que importa com exclusividade da França, Alemanha ou Itália.

O bar/loja/sala de degustação

Cheio de ótimas intenções, lá estava Edgar Alendouro, antigo sommelier-fundador do Euskalduna (considerado como um dos melhores restaurantes do Porto), com passagem também pelo Mugaritz, que agora se encarrega das visitas técnicas, do clube de vinhos, da loja, dos chás e dos eventos privados da Niepoort.

– Que estilo de vinhos você gosta?, perguntou.

Falei “assim”o básico:

– De Portugal, vinhos de regiões mais frias ou Madeira… de resto: Borgonha, Piemonte, Jura, Jerez, sei lá…

– A vantagem desse espaço – disse Edgar – é que cada degustação pode ser única e adaptável ao gosto do cliente.

E é verdade. Afinal, a Niepoort tem de tudo, tanto de estilos quanto de regiões: faz coisas no Minho, Vinhos Verdes, Douro, Dão, Bairrada, Alentejo (sem mencionar os vinhos que produz fora de Portugal).

Ótimo leitor de desejos, Edgar começa a abrir coisas perfeitas. Poderia falar de várias delas (provamos dez), mas destaco algumas:

  1. Vinhas Velhas Bairrada (Bical e Maria Gomes) 2018 – com nota oxidativa, é fresco, mineral, salino, com boa acidez e o solo de argila calcária mostrando ao que veio. As vinhas são velhas, de 80/90 anos e o vinho envelhece em foudres (de 1.000 litros) usadas por mais de 30 anos, do Mosel. Vinha os foudres, que equilibram a madeira num mundo que, infelizmente, ainda parece viciado nela!
  2. O Ururabo (significa “flor”em Bantu), um vinho feito em botas antigas de Jerez. Produzido pela primeira vez em 2019, no Douro, é 100% gouveio (casta subestimada que funcionou perfeitamente bem para esse estilo de vinho). Vinificado com um branco normal, com a vantagem de ter desenvolvido a “flor” emprestada pela ‘bota’ (tonel de 500 litros) cedida por um amigo espanhol. Doze lindos meses com ela. Um vinho com muita fruta (viva a gouveio!) e complexidade.
  3. Já tinha provado várias safras do Conciso (tinto), mas a 2019 foi uma das preferidas, com sua fruta vermelha fresca e nota floral. Feito predominantemente de baga e jaén é um glouglou de pura alegria. Ainda jovem, mas com futuro promissor.
A bateria do dia e marido ao fundo

Quando pensei que não era possível melhorar algo ótimo, foi.

Não se sabe ao certo o que levou o avô de Dirk a comprar os imensos garrafões esverdeados, de 8 a 11 litros, de uso farmacêutico. A hipótese mais provável foi a alta do preço do vidro, à época, daí ninguém ter pensado na evolução do vinho, e sim na economia: o jeito era engarrafar o maior volume de vinho no menor número de garrafas.

O lindo Demijhon do Porto que bebi

Nascia ali um estilo, inaugurado pela vinícola: os Garrafeira do Porto [que já existiam na Madeira, em vidros de 20 a 25 litros].

Os Garrafeira começam como um Porto estilo ruby (passando de 4 a 6 anos em pipas) e, ao final do estágio em madeira, são envasados na ‘demijohn’, o tal garrafão. Para a minha sorte e por incrível generosidade de Dirk, bebi um Garrafeira 1977 (feito em 1972) que abrira com amigos no dia anterior. Sim, um vinho de 50 anos no meu copo.

Garrafeiras são muito raros e caros (os da Niepoort, mais ainda) até porque só recentemente foram regulamentados. Para quem tem o Ruby como referência, garanto que esse é “outro bicho”; também frutado no aroma, mas bem mais aberto e mais fresco que os outros estilos, com ótimo equilíbrio entre fruta e dulçor. O gole daquele 77 veio cheio de damascos e figos secos. Um privilégio.

E não parou por aí.

Um dos cantos da adega

Descendo mais um nível, conheci um espaço ímpar reservado para os “N Collectors”, um clube de 872 membros admitidos por convite, que tem acesso a vinhos raros que podem ser degustados ali. O número é uma alusão ao ano de fundação da empresa e naquela seção da cave histórica, que abriga também uma linda coleção de abridores de garrafas da família, foi montada uma cozinha com equipamentos modernos (a turma do Mugaritz já cozinhou ali) para dar apoio às degustações conduzidas por Edgar.

De repente, um barulho de chaves pesadas e abre-se um portão: “Podem passar”. Era uma espetacular cave/museu com garrafas da família, incluindo uma das cinco demijohns Lalique, lindíssimas, representando cada uma das gerações da família Niepoort. Espiei um nicho cheio de garrafinhas gordinhas de um Colheita 1900, outro com uma de Porto 1869, todas cobertas de pó e umidade, intocadas, com direito à “angel’s share” – as marcas negras da evaporação do álcool das barricas ao longo dos anos – no teto abobadado.

Quando já estava ali naquele “céu”, Edgar apanha uma pipeta e me oferece a amostra de um barril. Era um porto branco 1968, que acabara de ser lançado, definitivamente o copo mais espetacular que bebi no ano, um nariz sóbrio, elegante, com nota cítrica na boca e adoráveis amêndoas e frutos secos de fazer chorar.

Morri? Não. Estou aqui para contar. Em que gaveta mental guardar todos esses vinhos? Num gavetão, meu caixão.

Para quem não teve a experiência que tive no dia anterior – os chás Camélia também podem ser degustados neste espaço num Wine & Tea Tasting.

Os vários modelos de visitas podem ser agendados [aqui].

E mais fotos e vídeos da Cave, no meu Instagram, [aqui]. Boa viagem!

Dirk Niepoort no Bazzar, em 2018

Conheça Nina

Nina e a flor da cammelia sinensis

O que dizer de Nina Gruntkowski, uma alemã que podia ser “só linda”, mas fala várias línguas, inclusive japonês e o português ‘Brasileiro’, estudou geografia e etnologia, foi radialista, morou na Namíbia, luta capoeira e, de quebra, decidiu criar uma das marcas de chá mais emblemáticas de Portugal?

Olhando para seus 12 mil pés de chá, sob a chuva, comenta: “Hoje, olhando para isso tudo, tenho uma grande alegria, mas foi uma luta grande, lembro que esse terreno era uma selva”, e então aponta para os corredores de plantas com alturas crescentes como quem lembra das dificuldades de se criar vários filhos: “Essa tem 1, aquela 2, 3 anos… e aquela ali é fileira mais antiga, com 6 anos de idade”.

Não havia referência alguma do que seria plantar ali, nem de onde conseguir as mudas ou qual seria o manejo ideal. Nada. A produção de chá em território português só existia nos Açores, e apesar da cultura no Continente ter acontecido aqui e ali, especialmente no Minho e no Alentejo, ninguém conseguiu ter escala suficiente para fazer daquilo um negócio. Bem, isso até Nina querer que fosse. 

Cultivar chás, sobretudo de forma orgânica, não é decisão fácil até porque a primeira colheita só acontece 5 anos depois. Ainda assim, decidiu ir adiante e começar o cultivo numa vinha abandonada, preparando o terreno todo a mão para evitar o impacto de equipamentos pesados. Começou em 2014 e só em 2019 teve a primeira planta com maturidade para a produção. 

Brindamos aos anos difíceis com uma Kombu Green, kombucha feita de chá verde em parceria com a HomeLab, de Bel Augusta, co-anfitriã do dia. Realmente deliciosa e fresca, assim como a minha preferida, feita de rosas cultivadas ali mesmo.  

Faltava pouco para o Natal e Nina falava dos próximos passos: em uma semana faria a poda das plantas e depois trataria de esperar ansiosa pela Primavera e os rebentos da primeira colheita do ano. Então sorri, se levanta e começa a preparar cadas um de seus maravilhosos chás. 

KINTSUGI CHÁ

Kintsugi, para quem não sabe, é a arte japonesa de consertar uma porcelana quebrada emendando as partes com ouro, prata ou platina, realçando as rachaduras como parte da “história” do objeto e não como algo a se disfarçar. 

Nina contou que durante uma de suas viagens, uma valiosa panela de ferro fundido para a produção de chás oferecida pela família Morimoto – seus parceiros japoneses em alguns produtos – se partiu. Conseguiram soldá-la e, a partir de então, o chá da primeira colheita é feito sempre ali, como um símbolo de renovação.

O Kintsugi Chá é feito das folhas da pré-colheita, as primeiras folhinhas que nascem depois da planta adormecer no Inverno, apanhadas a mão. O chá mais valioso do ano só sai em quantidades bem limitadas e tem mais doçura, complexidade e frescor.

O bule levou mais folhas que o habitual para dar conta de 3 ou mais infusões, como no método oriental. Como convém, as xícaras são menores para se provar cada uma das etapas: as duas primeiras ficaramem infusão por 3 minutos a 80 graus e a terceira por 4 minutos, a 85 graus. 

Pareciam 3 chás absolutamente diferentes. A bebida evoluiu de uma versão mais tímida para outra mais complexa e elegante, à medida que as folhas se desenrolam no bule e liberam mais e mais aromas com a reidratação. Aguenta até 5 infusões e tem notas doces, frescas e cheias de “umami”.

FLORCHÁ

Um exemplo de sustentabilidade, aproveitamento total da planta e, ainda, a bebida mais linda de se servir. 

A flor da camellia sinensis não tem cafeína, como a planta. Quer atrair e não afastar as abelhas, para que possa se propagar, claro. A infusão da flor desidratada tem um sabor sério, com notas de vagem e pólen e foi preparada a 90 graus por tempo que esqueci de registrar porque estava aparvalhada com a beleza das flores.

SENCHÁ ROSA

Isabel Teixeira cultiva flores comestíveis em Arnoia de Basto (perto de Amarante) e decidiu plantar uma variedade muito perfumada e rica em óleos essenciais dentro da propriedade da Camélia, poeticamente instaladas à sombra de um kiwizeiro. 

As flores inteiras são secas ao ar livre e usadas nesse blend de chá verde japonês da família Morimoto com as pétalas de rosa da propriedade e um toque de cidreira. Um chá delicadíssimo. Como a composição libera rápido os aromas foi preparado a 70 graus, por 1 minuto e meio.

PIPACHÁ

A ideia nasceu de uma viagem feita com o marido – Dirk Niepoort é um dos produtores de vinho mais respeitados e inovadores da Europa – à Coreia do Sul, em que visitaram um produtor de oolong que estagiava seus chás em madeira de cedro. 

Nascia ali a ideia de fazer algo ainda mais original: aproveitar afinar um oolong orgânico em barricas usadas para se fazer vinho do Porto. Estive na cave da Niepoort, no dia seguinte, onde vi as gavetas de secagem, as barricas cobertas onde o chá descansava e pegava notas deliciosas de fruta e chocolate. Um produto absolutamente incrível, não bastase o oolong ser um dos meus estilos preferidos. 

O chá foi servido com uma espécie de pastel doce de feijão, delicadíssimo e (nada a ver com isso) descobri que chás escuros combinam muito bem com queijos.

Aliás e por fim… 

Enquanto caminhávamos em direção ao recém-inaugurado salão de degustações no interior da casa, Nina decide parar e arrastar uma mesa pesadíssima – onde normalmente as provas são feitas em dias de sol – para protegê-la da chuva insistente. Antes daquilo, já que nosso trem até o Porto teve a partida atrasada por duas horas e meia por conta das chuvas, Nina decidiu fazer a gentileza de nos buscar na estação, onde comecei meu aprendizado sobre os chas Camélia com ela no volante. Também foi Nina que fez o tour conosco pela plantação, nos serviu kombucha, lavou os copos, esquentou a água, aqueceu uma refeição deliciosa (porque poderíamos estar com fome depois do atraso), montou a mesa, serviu os chás e os pastéis de feijão que o acompanharam. 

Nina tem uma grande equipe, claro, mas percebe-se o quanto é incansável, simples e “mão na massa”, em cada um de seus pequenos gestos, sempre acompanhados de um sorriso encantador.

Ninguém chega até por acaso.

Clique [aqui] para todos os stories no meu instagram sobre os Chás Camélia

[visitas podem ser agendadas. veja em https://chacamelia.com]

Seis dias em José Ignacio

[Um roteiro gastronômico-cultural]

Não gosto de confessar preconceitos, mas sou da contramão. Li num site, por exemplo, que Comporta era “os Hamptons dos anos 70, St.Barths dos anos 80 e Trancoso dos anos 2000’ e dei um bocejo profundo, daqueles de ficar com câimbra no maxilar. Se já não conhecesse a cidade, deixava de ir bem ali, no fim dessa frase.

O lugar “da vez” raramente me pega; até porque quando vira “da vez” já perdeu a identidade e encareceu por todos os motivos errados.

O primeiro sintoma é um resort, que se diz “exclusivo”, devora um belo naco da paisagem e blinda os hóspedes de tudo aquilo que fez do lugar um destino adorável, lá no princípio. Depois, some o comércio local, vêm as lojas de grife que nada dizem daquela cultura, a música lounge, vendedores trilíngues e o antigo restaurante pé na areia vira aquela coisa pasteurizada, trufada e com vinhos milionários de quem escolhe pela coluna da direita.

O problema do pré-julgamento é que a exceção te põe o dedo no nariz e diz: eu não disse que valia a pena?

Há uns 20 anos, em breve passagem por Montevideo, esbarrei em José Ignacio, a “cidade da vez” do Uruguai. Nem deu tempo de vestir o preconceito porque, quando me dei conta, já estava encantada com aquele farol no meio do nada, com as casinhas espalhadas (que não podem ultrapassar 6 metros de altura), com a vegetação rasteira e florida das dunas à beira-mar, um leão marinho ocasinal, as ruas batizadas com o nome dos pássaros e o cheiro de lenha queimada dos restaurantes.

Já sabia, então, que a pequena vila de pescadores era pouso de uruguaios e argentinos endinheirados, mas antes que eu pudesse entortar a boca e dizer “humpf!”, já estava no avião pela segunda vez.

José Ignacio tem a escala uruguaia como vantagem. O país de 3 milhões de habitantes segue, felizmente, ainda um pouco fora do radar mundial, com 98% dos seus turistas chegando de países vizinhos, o que não bagunça tanto a identidade. Além disso, os quase 800 habitantes permanentes ainda conseguem conter os impulsos destrutivos dos 40 ou 50 mil visitantes de alta temporada.

Mesmo tendo aparecido no NYTimes e Condé-Nast como o destino incontornável, conserva um charme meio Búzios dos anos 50, em que havia (claro) o globe-trotter rico, mas também uma cena artística muito forte com Lygia Clark, Helio Oiticica e tal.

A comida de José Ignacio é simples e adorável como no resto do país e pode ser traduzida numa palavra: assados. São legumes, carnes, muitos peixes, queijos feitos na brasa, além do leite denso e gordo que faz o incontornável dulce de leche, e tudo isso regado a muito vinho. Não sei o que acham, mas eu não preciso de muito mais.

Os jantares começam a partir de 21hs e há quem chegue, na alta temporada, para uma refeição à meia-noite.

Pelas ruas, não há pistas da quantidade de pessoas na cidade que, felizmente, consegue ser animada de um jeito muito silencioso e elegante. Mas ao entrar nos restaurantes, sempre pensava: onde se esconde toda essa gente?

ONDE COMER

LA HUELLA

O La Huella não é uma novidade. É, sim, um porto seguro em José Ignácio, desde 2001. Ali não há luxo (que bom!), só a qualidade dos peixes frescos e outras coisas do mar num amplo deck coberto com madeira e mantas distribuídas pelas cadeiras, para quando o vento gelado bater.

Podia viver só das divinas amêijoas, mas vale pedir um “lisa” (peixe untuoso local, primo distante do bacalhau) que ali vem cru, com gema de ovo. Para fomes maiores, recomendo a corvina branca, simplesmente na brasa e um inevitável flan para terminar, já que é pecado rejeitar ‘dulces’ na terra de bons ‘leches’.

SOLERA BAR DE VINOS Y TAPAS

Num canto improvável – assim meio escondido atrás de um posto de gasolina – plantaram uma semente de sucesso com dois containers emparelhados e uma lona estendida entre eles. Com o tempo, o espaço ganhou um teto, um chão, melhor iluminação e foi assim, sendo construído pela adorável Soledad Bassini e Fernando Rodriguez, que comemoraram 5 anos do Solera, agora em dezembro.

O lugar foi uma surpresa e uma delícia: um bar de vinhos e tapas de inspiração espanhola e ingredientes locais com gente bonita que não pára de chegar. Na alta temporada, há quem só consiga jantar só à meia noite.

Comi maravilhosos aspargos e outros ingredientes da estação, como os buñuelos de grão de bico, kale e acelga. Além deles, um ótimo cordeiro com pão chato da casa e iogurte, crudos e tal, tudo dentro daquela estória de pequenos pratos para rimar com grandes copos, que me deixou muito feliz. Um lugar para morar.

JUANA

Tem aquele escurinho bem encomendado, mais intimista, bom para um bate papo de perto, beber um copo, namorar, mas funcionou lindamente para a nossa mesa de oito. A alegria se espalha por vários ambientes, salinhas à meia luz, que incluem um adorável jardim com aquela tripa de lâmpadas penduradas, no fundo da casa.

O Juana Cocina Bar foi uma inesperada e excelente novidade, principalmente pela comida local e sazonal, como gosto.

Adorei especialmente o tiradito de peixe rey, o “camembert” uruguaio derretido na panelinha, a corvina com hummus de beterraba, o rack de cordeiro na brasa com polenta crocante, as sobremesas, a carta de vinhos etc etc.

Um lugar para voltar.

RESTAURANTE da BODEGA GARZÓN

“É só a receita clássica, com ojo de bife, azeitonas, cominho e ovos”.

Já provei umas 20 versões de empanadas, mas nenhuma chegou nem perto.

Saída de um forno de barro pelas mãos do talentoso Nicolás Acosta, fiquei com a lembrança espetacular que foi só o início da refeição que começou no assador da Bodega Garzón e terminou igualmente impecável, no salão do restaurante, com as explicações de Francis Mallmann que se sentou ao meu lado (enquanto eu tentava controlar a emoção).

Provei uma língua marinada divina que empatou em alegria com o blinis com caviar uruguaio e o denso creme feito com leite local; depois veio a fainá, a ‘farinata’ piemontesa, uma torta de grão de bico que é preparada no Uruguai desde o início do século passado; em seguida a corvina a la plancha com purê de couve-flor, vegetais e salmoriglio (molho de ervas e limão). Terminei feliz com uma torta de pistaches, limão, ricota e mascarpone. Sem exagero nenhum, das melhores refeições que fizemos na viagem.

De mãe e avó uruguaias, Francis Mallmann conta que passa uns 5 meses por ano naquelas terras, quando se encarrega de supervisionar a cozinha do restaurante da Garzón, sob seu comando.

Para ele, os ingredientes obrigatórios do Pueblo são os cordeiros de Rocha (melhor criação de ovinos do país), a corvina negra, que começa a chegar em outubro e tem a melhor temporada em janeiro, os queijos (cada vez melhores) e especialmente os pêssegos Rey del Monte, que devem ser comidos em janeiro, “mas só se não chover muito”, senão dá tudo errado.

Quem sabe escutar, não precisa de mais nada.

[Viajei a convite da vinícola, mas o leitor que me acompanha sabe que aqui não há viés. Posso garantir que foi a melhor refeição que fiz por lá.]

ONDE FICAR

POSADA TAMARINDO

Foi minha casa por uma semana. Uma casa linda e gentil, com a equipe mais afetuosa e atenta que alguém pode desejar.

Aos quartos, não falta nada. Há muito conforto e elegância.

ESTANCIA VIK

Gostam de chamar de ‘retiro’.

É uma estância em estilo colonial espanhol, com 4 alas mirando os pontos cardeais e um pátio central. Nasceu como casa da família Vik e hoje é um hotel de luxo, silencioso, distante de tudo, onde se pode andar a cavalo, contemplar a natureza e as intervenções de artistas uruguaios em cada canto da propriedade (só a casa, 4.600m2, a propriedade, 50.000m2).

Como meu olhar sempre passa sempre pelo estômago, adorei a refeição tamanho família, feita em uma mesa longa de “hacienda”, como na minha infância. Mario Oliveira, nosso anfitrião, comenta a estrutura de tijolos do salão e mostra que não há argamassa. A estrutura e abóbada são todas de encaixe, reproduzindo o estilo antigo.

Ali, naquele lugar mágico, sobre uma adega idem, comi deliciosos vegetais, bela salada de alcachofras e legumes da estação com couves crocantes e o melhor cordeiro da viagem. Tudo muito bom e regado a 3 tannats da Garzón, que mostram a versatilidade da uva emblemática do Uruguai, que escoltou bem todas as etapas.

Se é para me ‘retirar’, prefiro assim.

O QUE VER

CASAPUEBLO

A cidade conseguiu atrair gente como Carlos Páez Villaró, que não veio na vida a passeio.

Para falar só da Casapueblo, uma incrível construção em cimento branco que começou como seu pequeno ateliê em 1958, em Punta Ballena, e foi crescendo anos a fio numa sucessão de ondas esticadas com desvios, subidas e descidas de uma cabeça loucamente privilegiada até virar a construção grandiosa que é, eu teria que fazer uns 50 textos.

Ali, cada “rincón” é dedicado a um amigo (e que amigos! Vinicius, Picasso, Vargas Llosa etc) e tem um espírito único. Sua coleção colossal de pinturas, cerâmicas, esculturas e murais é reflexo de tantas experiências em países, culturas, religiões, expressões musicais e políticas diferentes que parecem ser a obra de umas cinco vidas.

Mais lindo que isso tudo foi poder conversar com Annette, sua viúva, e visitar os cômodos privados do casal. Um privilégio. Meu e dos 7 gatos, que por ali se esticam. Apesar do tour particular, qualquer espaço aberto à visitação da CasaPueblo vale a viagem. Uma série de celebrações está pensada para os seus 100 anos, que aconteceriam em 2023. A hora é agora.

MACA

A cabeça voou com a linda floresta de eucaliptos que margeava a estrada e só pousou numa construção em madeira de formas onduladas, quilômetros depois: era o novo Museu de Arte Contemporânea do artista Pablo Atchugarry.

A Fundação já tinha em seus jardins o Parque das Esculturas, uns 25 hectares com obras imensas que juntam arte e natureza, mas desde janeiro deste ano ganhou um prédio espetacular de 5.500m2. A ideia nasceu há 15 anos, inspirada justamente na floresta que cerca a propriedade, mas acabou sendo executada somente na pandemia e levou dois anos e meio para ficar pronta.

O interior é impactante, com um teto feito com eucalipto red grandis tratado e moldado na França, cheio de formas geométricas, umas dentro das outras.

O projeto do arquiteto Carlos Ott abriga a coleção permanente da Fundação Atchugarry (Julio le Parc, Carlos Cruz-Diez, Joaquín Torres García, nosso grande Vik Muniz entre outros) e, também, exposições itinerantes de 3 meses como, por exemplo, a dos artistas Christo e León Ferrari, que aconteceu este ano.

A Fundação, que não conta com recursos governamentais, é o grande sonho de um homem só, que pretende tornar a arte acessível para todos. Faz conferências, concertos, oficinas de arte e um belo trabalho junto às escolas. Ano passado, por exemplo, houve um show de Toquinho, que tocou ali para mais de 12 mil pessoas, num espaço de vários cenários simultâneos que incluía também o balé nacional.

Não bastasse tudo aquilo, um outro galpão, menor, me permitiu mergulhar na obra de Pablo Atchugarry e ver as as diferentes cores, tipos de mármore e tratamentos que o artista dá às suas esculturas, sempre esguias, drapeadas e fluidas. Mais adiante, uma capela muito contemporânea com sua versão da Pietà, de Michelangelo.

Este programa imperdível fica exatamente entre Punta del Este e José Ignacio. Não podia ser melhor.

[e é claro – vide foto abaixo – que meu olhar tinha de pousar sobre uma obra feita com madeira de oliveira. Toda a madeira, aliás, usada não só nos prédios como nas obras, é certificada]

OS VINHOS DA GARZÓN

Viajei para o Uruguai a convite da vinícola. Eleita a melhor bodega do Novo Mundo e, também, entre as 5 melhores do Mundo nos últimos 3 anos, com vinhos negociados na Place de Bordeaux, vários deles com pontuações acima de 90 nos principais rankings do mundo, meu pobre texto já chega perdendo.

O que poderia dizer de novo?

Só posso dizer do que vi e provei.

Sentada diante de Alberto Antonini (sou fã absoluta do enólogo consultor, dos mais respeitados do planeta), ao lado de Christian Wylie (Managing Director de uma empresa que está em 50 países) e na diagonal de German_bruzzone (o talentoso enólogo, 3a geração mergulhada em vinhos), pensei: “o melhor que posso fazer é ficar quieta”.

Em 10 minutos, Antonini já tinha falado umas 5 frases antológicas que eu gostaria de ter anotado, não fosse o embaraço de pegar o celular para escrever, no jantar.

Aos vinhos:

Já era fã do Albariño de entrada (que não tem muito da referência espanhola – é “outra” coisa que sempre me dá saudades do Uruguai), mas reforço o côro da querida Cris Neves, que bem representa a marca no Brasil, quando digo que o Cabernet Franc Petit Clos 2018 é coisa espetacular de beber. Me encantei com um fresco e vibrante Marselan 2020 e tive a honra de estar entre as primeiras a provar o icônico Balasto também 2020 (safra histórica da casa) que esperava que causasse algum impacto, mas não tanto.

O nariz é das coisas mais lindas dos últimos tempos, com camadas e camadas de fruta madura, nota herbácea e de chocolate amargo, looongo como se não houvesse amanhã. Uma beleza.

Podia falar de vários outros (foram 6 dias só bebendo Bodega Garzón) mas paro por aqui.

De resto, fico com o encantamento pelo apoio da vinícola às artes plásticas, música, balé, cultura em geral. Uma escolha importante e rara num mundo bagunçado.

Lisa com gema de ovo curada do La Huella

Solera Vinos y Tapas

Juana e seu jardim ao fundo

O quarto adorável da Posada Tamarindo

A elegante Estancia Vik

Casa Pueblo. Incontornável.

Maca. Um mar de esculturas a céu aberto.

O enólogo Germán Bruzzone e os vinhos do dia

Mallmann. Genial, simpático e estiloso.

“Sake in Rio”, eu fui!

Era para ter sido só uma entrevista, mas acabei fazendo um curso. 

Conheci o Adegão há muitos anos, ainda na sua antiga loja “Adega de Sake” na Liberdade, em São Paulo, em passeio conduzido e comentado pelo melhor guia que se pode ter: o querido amigo Luiz Horta. 

– Adegão, Luiz?, perguntei. 

– É Alexandre Tatsuya Iida, mas ninguém o chama assim.

O nome cabe como uma luva, mas daquelas gigantes de baseball, imensa como o rapaz que é também coração, emoção, o superlativo Adegão. 

Soube que viria ao Rio para ministrar o primeiro Curso intensivo de formação de Sake Experts do Rio de Janeiro e pedi o programa para entender a abrangência. Tinha de tudo: história, ingredientes, processo, tipos, categorias, temperaturas, rituais, etiqueta, serviço e até aula de japonês para entender os rótulos… Resultado: caí em tentação, mendiguei uma vaga na turma lotada e saí “experta”, com diploma embaixo do braço e boa dose de bestice. 

Não sabemos exatamente quando aconteceu, mas a cultura japonesa nos pegou pelo estômago. Enquanto minha geração cresceu com as cozinhas francesa ou italiana como referências absolutas, a geração dos meus fihos se orientalizou: “Passa o gohan?”, “O tonkatsu daqui é bom!”. 

De uma hora para outra, percebi que é mais fácil adolescentes falarem de rāmen que de um cacio e pepe ou pedirem um mochi no lugar de um petit gâteau. Sushi e sashimi são tão ‘feijão com arroz’ que já nem merecem o itálico nesse texto. 

Ainda assim, nosso conhecimento é superficial, o que também se reflete nos prêmios que distribuímos. 

Em concursos gastronômicos, entendemos que “o melhor bar” e o “melhor restaurante” devem ser avaliados como coisas distintas, assim como separamos os prêmios das pizzarias dos da alta gastronomia italiana, por exemplo. Da mesma forma, uma casa que serve rāmen (quase um fast food japonês), não deveria competir com um izakaya (bar de rua simples, com menu enxuto, em geral sem garçom) e muito menos com um restaurante que serve refeição kaiseki (um menu formal com várias etapas e uma sequência de preparações bem determinada), explica Adegão. E é a mais pura verdade…

Falando em restaurantes, conheci no balcão do Euskalduna, um ótimo restaurante na cidade do Porto, o empresário Pablo Alomar Salvioni, que revende produtos de origem japonesa em Portugal e na Espanha. O ‘boa noite’ civilizado que se dá ao vizinho de bancada terminou em entrevista (bem eu…). Para Pablo, o consumo de sake naqueles países está descolando dos restaurantes típicos e indo para outras especialidades por conta da harmonização, já que a maior parte dos chefs estrelados de hoje serve pratos, usa técnicas de cocção e ingredientes japoneses. É uma nova frente para o crescimento do mercado, além do consumo doméstico, que já é alto.

De quebra, fiquei com várias dicas: presunto cru ibérico faz par perfeito com Junmai Ginjo porque o umami da bebida complementa os óleos do jamón, além do sal da comida ressaltar os aromas do sake. E mais: caviar vai bem com Dai Ginjo; boeuf bourguignon com Koshu maduro; queijo de cabra fresco com Ginjo Junmai, queijo maturado com sake Yamahai; queijo de massa firme e envelhecido com Koshu; cotoletta alla milanese com Tokubetsu Junmai e pizza com Junmaishu o Honjoso. Anotou?

Na mesma viagem, soube por Edgar Alendouro – sommelier da Niepoort, um dos produtores de vinho mais inovadores de Portugal – que a casa também vê potencial na bebida e lança em janeiro dois sakês, em séries limitadas com dois lotes de menos de 2.000 garrafas, cada. O sakê base foi trazido do Japão e o blend foi feito pelo próprio Dirk Niepoort em sua cave (em Vila Nova de Gaia) a partir dos sakês da pequena Brewery Tanaka, fundada em 1885. 

Menandro Rodrigues, sócio do Haru Sushi Bar, foi um dos primeiros do Rio a fazer o curso, mas teve de ir a São Paulo por 8 semanas para receber seu diploma. Do vai e vem nasceu uma parceria. Afinal, o Rio é o segundo mercado nacional para o sake e Adegão percebeu que precisava levar o curso para as capitais onde o consumo da bebida é grande.

Para a nossa alegria, não só o Haru foi o palco do Sake Intensive que fiz no Rio, como será de outros eventos. A ideia da dupla é fazer uma Semana da Gastronomia Japonesa no Rio.

Vai ter aula de etiqueta japonesa, situações de consumo de cada comida e bebida, frases básicas e como se portar em restaurantes, como usar (e não usar) cada tipo de hashi etc. Também havéra aula sobre os segredos do arroz, dos pratos clássicos até o shari (arroz para sushi). Em outro dia, haverá um jantar comentado com a abertura de um atum inteiro sobre o balcão do Haru, com a explicação de cada corte e harmonização de cada parte do atum com seu estilo ideal de sake. Segundo Alexandre, o atum é como um boi: cada peça tem sabor, nível de gordura e textura diferentes, daí merecerem bebidas distintas. Akami com daiginjo, ōtoro com junmai e por aí vai… Nossa turminha de sake, com certeza, vai encher uma sala. 

Me lembro exatamente quando Adegão virou SAKE SAMURAI no Santuário Shimogamo, em Kyoto, lugar em que apenas sacerdotes podem pisar. O título foi criado em 2005 pelo Japan Sake Brewers Association Junior Council e é outorgado a pessoas que se destacam na promoção, divulgação e comercialização da bebida. São apenas 95 pelo Mundo e Alexandre é o único na América Latina. 

Encho o peito para dizer que sou uma das 84 Sake Experts no Brasil, formada pelo Alexandre. Afinal, a turminha carioca recebeu o diploma pelas mãos do Cônsul Geral do Japão no Rio de Janeiro, Sr. Ken Hashiba, que entende que esse tipo de iniciativa ajuda a propagar a cultura e o consumo de produtos japoneses no Brasil. Como a turma lotou num piscar de olhos, haverá novo curso nos dias 4 e 5 de fevereiro e, quem sabe, ainda mais. 

Bebi e vendi sake em meus restaurantes por mais de 20 anos. Achei que sabia alguma coisa, mas a verdade é que não sabia nada. Não sabia, aliás, que sake é o nome dado a qualquer bebida com mais de 1% de álcool. Cerveja é sake, whisky é sake, vinho é sake. Informei.

Vá lá aprender, também. Kampai!

A “cura” em tempos de coronavírus

[texto publicado na Veja Rio em abril de 2020]

No tempo em que eu enchia linguiça, eram dois cubinhos de carne, um de gordura e um tanto de temperos, assim, nessa ordem. Quem queria que eu me ocupasse era Dona Laura — nenhum dente na boca —, e eu fazia aquilo por horas, escorregando as mãos pela tripa sebosa. Naquela época, a luz da fazenda ainda era a do gerador. Às vezes, tremelicava e… Puf! Ficava eu com o dedo parado, sem escorregar nada, esperando voltar. Prendia a respiração, vinha a luz… E eu enchia linguiça. Não sabia de vírus, boleto, crise, fronteira, leito, mortes. Pegava numa bacia os dois cubinhos de carne, na outra um tanto de gordura, e num prato de florezinhas catava os temperos, escorregando as mãos pela tripa sebosa, até o nó.

Lembrei da cena da infância, nesses dias de quarentena, porque cada segundo cismou de ter meia hora. Eram dias simples aqueles, em que eu temperava, salgava, “curava” coisas. Bem que podia funcionar com a gente agora…

Fosse mineira, tudo estaria resolvido. Escolheria ser “carne serenada”, “orvalhada”, a preparação típica do norte do estado, quase extinta. Espalharia sal pelo corpo — um bom punhado por quilo —, descansaria por cinco horas e depois iria até o parapeito da janela, para me sentar no sereno por duas noites. Acordaria curada e rebatizada com poesia.

Com a cabeça voando até a Sardenha, me imaginei ova, arrancada das vísceras de uma tainha, lavada, salgada, prensada e posta para secar, esperando que bentu maestru — o vento Mistral — me batesse violentamente no rosto, até o fim do outono. Acordaria bottarga, curada do mesmo jeito que os fenícios, primeiros colonizadores da ilha, fizeram há 2000 anos. Na vizinha Córsega, escolheria ser figatellu, ou figateddu, como vi chamarem no sul. Eu, o porco, viraria linguiça feita de carne, gordura e fígado, por vezes juntando meu baço, coração e pulmão. Depois de ter a anatomia rearranjada para a cura, me regaria com um pouco de vinho tinto (perfeito!) e alho. Talvez fosse defumada, talvez não, mas, como manda a tradição, esperaria para me salvar entre a primeira e a última neve do inverno.

E, toda vez que falo em neve, me vem à cabeça a imagem de Pasang, um nepalês que conheci nos Estados Unidos. Antes de migrar, era escalador de elite e, a partir de sua cidade natal, a 3000 metros de altitude, sua rotina consistia das pequenas escaladas de quatro dias a um mês, ajudando a turistada a subir o Everest.

Eram sete meses no sobe e desce e outros cinco, descansando junto da família, como agora fazemos na quarentena. Como budista, dizia-se quase vegetariano, mas vez por outra, antes do tempo piorar, visitava um mercado “de hindus que matam” e comprava um filé de 400 gramas de iaque, que era toda a carne que sua família precisaria por um mês.

Minha cura enquanto iaque, dos poucos rebanhos que sobrevivem no Himalaia, seria a salga com um tanto de timur, prima da pimenta-de-sichuan, que, assim como o jambu, adormece a língua. Depois de sete dias, bem seca e perfumada, poderia me sentar ao lado de um belo curry de legumes. Achei bonita a causa.

Fosse primavera, estaria a passeio pela costa espanhola e me salvaria da pandemia como as famosas anchovas do mar Cantábrico, preparadas nas províncias de Laredo ou Santoña. Entraria num barril, tranquila por nove meses, coberta de sal, pimenta e outros condimentos secretos, para acordar melhor. Um bom produtor me regaria com o melhor azeite da região e eu renasceria enlatada, com a carne firme, mas macia e com um papelucho sob meu corpo, onde alguém leria: anchova feita a mão por “Amparo”, “Josep” ou outro artesão treinado por mestres-conserveiros.

E, por fim, se a cura tivesse de ser muito longa, migraria para os pastos verdes do norte da Holanda, abaixo do nível do mar, e teria a vida de um gouda envelhecido, o queijo mais importante do país e um dos melhores que já comi. Depois de trinta meses de paciência, meu alter ego lácteo, vitorioso, teria um sabor profundo, gordo e de nozes. Com a mágica maravilhosa que só o tempo traz, pequenos cristais se formariam em minha massa alaranjada de consistência indecisa — entre cremosa e quebradiça — e eu seria, enfim, memorável. E a cabeça voa longe, quando o corpo não pode ir ou vir.

A origem de várias dessas comidas, abundantes hoje em dia, foi resposta à PRIVAÇÃO, fruto da necessidade de aproveitar cada pequeno pedaço de alimento e conservá-lo, enquanto havia. A maioria de nós nunca enfrentou seca profunda, invernos rigorosos ou escassez, mas a mesma privação que causa a ansiedade louca de agora vai parir a solução. É preciso ter calma, muita calma. Seja em três dias ou trinta meses, a cura sempre vem.

A esquina de casa – Parcelles, Paris

A cada viagem que faço, procuro o “restaurante da esquina” ideal; uma espécie de gênio da lâmpada do meu estômago, que merecia morar sempre perto de casa. 

Tombe a fome para saladas ou gordices, a ‘esquina’ está sempre lá, perfeita. Não tem rococós, pinguinhos calculados, esculturas comestíveis ou utensílios caríssimos; só qualidade. Ali, o serviço é eficiente e quase invisível, elucidativo sem ser afetado e, nem preciso dizer, a sala de estar da minha alegria orbita em torno do vinho. 

O ponto já era ímã desde os tempos do Taxi Jaune, restaurante fundado em 1934 onde artistas e outras figuras de importância iam atrás da famosa carne de cavalo. Em lugares afetivos como esse, saudades não são facilmente substituíveis, mas não havia ninguém melhor do que Sarah Michielsen, com seus 20 anos de experiência (dirigiu o Gusto, também o Le Temps au Temps e conseguiu uma estrela Michelin no seu antigo Itinéraires) para comprar o antigo restaurante e ainda fazer o público voltar com força, fazendo do Parcelles um dos bistrôs mais queridos do momento, uma unanimidade em guias de todas as cores.

A passagem do ponto se deu no auge da pandemia (um bom momento para se livrar das amarras de uma cozinha estrelada). O movimento incluiu também a abertura de uma adega-épicerie do outro lado da rua, com patês, terrines, rillettes, além de um sotaque espanhol nos jamóns, morcillas e chorizos para levar, junto com uma ótima seleção de vinhos predominantemente orgânicos, biodinâmicos e naturais. 

Aquela apreensão que me acomete a cada novo restaurante, passou na primeira espiada na prateleira ao lado: tinha um Selosse, um Cappellano, um Échezaux do Dujac, um Hermitage do Jean-Louis Chave… Pas mal. Apesar das garrafas-estrela, a carta de Bastien Fidelin tem vinhos para todos os bolsos, com a equipe preparada para conversas sobre harmonização ou estilos que combinam com cada cliente. 

A comida de Julien Chevallier é a que chamam de “bourgeoise” (cozinha-conforto-caseira-de-classe-média) com apresentação descomplicada, mas que ali vem com segredos que fazem toda a diferença: um vinagrete de tozazu, aqui, um nabo japonês hinona kabu, ali. E os preços não assustam, para os padrões franceses: entradas e sobremesas em torno de 13 euros e principais em torno de 25, com a adição, todos os dias, de um prato vegetariano . 

Fui de beterrabas com folhas de vinagreira, sabayon de estragão e meu adorado queijo de ovelha dos Pirineus: o tomme de brebis. Segui com um abraço na forma de repolho cozido recheado com porco de Clavisy, foie gras, pistaches e caldo de carne (invejei vieiras e mollejas vizinhas). Terminei com torta de figos de Solliès, que estavam na época, montados sobre uma base de mascarpone que me fez sentar no colo da avó francesa que nunca tive. 

Não sei bem o que faz do restaurante um cenário agradável, talvez a rua histórica e calma, talvez a luz bonita que entra pelas janelas. Quem sabe a fórmula tenha sido não mexer no time que já estava ganhando no restaurante anterior: lindo balcão de zinco art-déco com um neon retrô acima do bar e, ainda, as paredes de pedra e mosaicos no chão do prédio do século XVIII. 

Não bastasse tudo isso, tive ótima companhia (o melhor tempero que há). Sugeri o almoço certa que ia surpreender um casal de amigos que tudo conhece (Álvaro Loureiro e Pedro Figueiredo). 

Foi surpresa? Não. Quem sabe, sabe…

www.parcelles-paris.fr/

le menu

Arbois. Por quoi pas?

Uma boa sugestão do sommelier: um vinho feito de Mondeuse na Savóia, para rimar com toda a bagunça da mesa

uma boa sugestão do sommelier: um vinho feito de Mondeuse na Savóia, para rimar com toda a bagunça da mesa

salada de beterrabas com vinagreira, sabayon de estragão e queijo tomme de brebis

mollejas com sálvia do vizinho

repolho recheado com porco de Clavisy, foie gras, pistaches e caldo de carne (bomba calórica – leve, de verdade – fantasiada de saudável)

torta de figos de Solliès com mascarpone

a prateleira da inveja

Minha vida Fontaineblense…

[os jardins do Castelo de Fontainebleau, grande alegria na pequena cidade]

Gostei dos pães da Boulangerie Dardonville e achei, com facilidade, a insubstituível manteiga Bordier. Havia boas loja de vinhos convencionais e outra ótima de vinhos naturais, adotei uma cafeteria com bons grãos etíopes e um outro canto, com chás. Há bistrôs corretos, queijos espetaculares, excelente confeitaria e, para a hora da saudade, boas pizzas e um bom japonês. 

De resto, boas livrarias, umas galerias de arte, um teatro. Tudo numa cidade do tamanho de Ipanema. É claro. Há o onipresente “peru no pires” em forma de castelo, principal ímã turístico da cidade.

Passei bons dias em Fontainebleau, cidade em que todos vão aos fins de semana para Paris, inclusive meu filho, que agora estuda por lá. 

Paris perde quase 11.000 habitantes por ano para cidades periféricas. Não é má solução, em termos de custo de vida. Casais jovens não acham mais imóveis para alugar na capital (viraram Air BnB) e moram mais tempo com os pais, antes de tomarem a decisão de viver pará lá e para cá, num trem. 

As pequenas cidades se transformam, lentamente, e o adeus aos grandes centros me parece permanente.

Deixo aqui um pequeno guia cheio de afeto, (qualquer lugar onde o filho esteja é o melhor do mundo), para aqueles de passagem.

RESTAURANTES

L’AXEL – Apesar do tamanho de Fontainebleau, coube uma estrela Michelin da cidade. Num pequeno salão intimista e agradável, Kunihisa Goto serve ostras da bacia de Marennes Oléron com emulsao de frutas exóticas, mexilhões de Bouchot do Mont St Michel com curry feito de feijão branco (coco de Paimpol), uma deliciosa vichyssoise de bacalhau e um bom pombo com beterrabas, figos da época, vinagrete de framboesa e cogumelos chanterelles. A carta e o serviço de vinhos foram excelentes.

GINA – o restaurante italiano, recém-inaugurado (setembro de 22) fica no Hotel La Demeure du Parc, onde tive a sorte de me hospedar (ótimos quartos e serviço). O salão é talvez um dos ambientes mais agradáveis e o menu italiano tem alguns itens cenográficos como uma porchetta imensa, costeleta à milanesa gigante e tal, que causam impacto no serviço feito pela equipe de salão. Gostei particularmente de um menu degustação em torno de frutos do mar. O serviço é simpático e o menu de almoço, apesar de enxuto, tem clássicos eficientes. A casa tem ótimos drinks, mas a carta de vinhos tem rótulos e regiões mais comerciais e com margens “de hotel”.

FUUMI – Tive vontade de voltar. Além dos peixes mais frescos da cidade e um arroz de alho assado que comi compulsivamente, comida japonesa quente de muita qualidade brota do balcão do chef Kenta Iyori, que se ocupa da chapa. Do fogão, um espetacular chawanmushi de bonito e shiitake com alho poró, caranguejo desfiado e camarões de Madagascar. Cobicei ramens vizinhos… Ótimo junmai dai-ginjo Sho Chiku Bai (Shirakabegura) da região de Hyogo, na Ilha de Honshu. O restaurante foi criado por Kunihisa Goto, o chef do vizinho L’Axel, a estrela Michelin da cidade.

LA PETITE ARDOISE – um verdadeiro bistrô, para momentos de comida clássica com foco na procedência dos ingredientes, como os escargots de Pampfou, ovos da Fazenda Laveau 77, coisa e tal. O foco é bem local e, até por isso tem queijos, muitos queijos, numa rua que apelidamos de “A Dias Ferreira” de Fontainebleau.

ANTICA TRATTORIA – um dos restaurateurs mais bem sucedidos da cidade (Enrico Einaudi) estudou no Insead, uma das melhores escolas de negócios do Mundo em torno da qual a cidade também orbita (e meu filho estuda, pausa para uma propaganda nada subliminar). Largou o trabalho de controladoria na cidade grande e decidiu abrir vários restaurantes por ali. De sua Trattoria brotam imensas filas em torno de boas massas, pizzas e um serviço eficiente e simpático.

LE FRANKLIN – não esperava muito da casa com jeito de bar na esquina noturna mais animada da cidade, mas a taberna com comida da região de Aveyron, no sul da França, estava bem gostosa, dentro de um espírito bem carnívoro e de embutidos e gordices como aligot, foie gras e tal. Pedi uma salada para disfarçar a gula, e estava boa.

LE PATTON – gostei especialmente da construção, uma mansão do século XIX que conta com uma varanda coberta muito agradável para almoço ou jantar, com a vista do jardim nos fundos. A ideia, desse restaurante que já tem 12 anos de idade é guardar o espírito da casa que já está na família há 4 gerações. O menu do dia foi boa opção e tinha boudin noir, que não costumo recusar. Tem um jeito (no almoço) de business account.

LE SOMMELIER DU CHÂTEAU – o foco fica na varanda agradável e seus vinhos, que podem ser acompanhados de tapas e outros. Lá dentro, a cozinha é criativa, com ingredientes mais leves que muitos vizinhos (carpaccio de vieiras com maracujá, baunilha e limão ou aspagos grelhados com bottarga e pesto de ail des ours, o alho-selvagem), mas um pouco demorada.

BISTROT DES AMIS – do mesmo dono da Antica Trattoria, o lugar tem a vantagem de estar aberto em dias e horários ingratos e isso (acreditem) vem bem a calhar para um passante. Comi bons ceviches que, pela tradição da região e estranhamento dos brasileiros, sempre levam muitas frutas e flores. Achei algo que adoro: a muxama de atum (fatias finas de atum curadas, como um presunto) que ali vinha com amêndoas, uma das especialidades da casa.

PADARIAS E CONFEITARIAS

BOULANGERIE DARDONVILLE – Era dela a cesta de pães servida no meu hotel e também os reencontrei em alguns dos melhores restaurantes da cidade. Provei de vários grãos, tamanhos, preparações, tanto doces quanto salgadas, com ótima qualidade.

SUZY ET ARLETTE – Descobri que a padaria ganhou o concurso da região do Seine et Marne na categoria pain au chocolat (para quê, meu bom Deus?), mas também adorei outros tantos itens de confeitaria, para a infelicidade dos meus quadris. Tudo delicioso, além do atendimento alegre e divertido.

L’A PÂTISSERIE – KG – sem dúvida, a melhor confeitaria da cidade, pela qual me apaixonei na casa da amiga residente e gourmet Mariana Schapira. Há doces divinos como o de creme de amêndoas com yuzu ou o crocante de caju com frutas vermelhas.

CAFÉS ESPECIAIS

PAUL ET PAULETTE – Há uma boa loja com grãos para quem tem cafeteira em casa. Como não era meu caso, e depois de muito procurar, bati ponto nessa adorável cafeteria, para lattes, expressos e filtrados, com grãos variados de ótimas procedências. Atendimento muito simpático dos proprietários.

CHÁS

CHEZ ELEMIAH – é um salão de chá com comidinhas lindas veganas que não cheguei a provar. Foquei na bebida que tomava antes ou depois de um giro na galeria de arte, à côté.

QUEIJOS

LES TERROIRS DE FRANCE – não se deixe levar por vitrines mais ordenadas, aqui há um mestre queijeiro (a terceira geração na família) que explica com cuidado e carinho cada tipo de queijo e seu momento. Excelente seleção. Não esqueçamos que a região (Seine et Marne) é a terra do queijo brie e do menos conhecido (mas não menos delicioso) coulommiers, de massa mole e feito com leite de vaca. “Fica a dica” e o encantamento com a loja de Christophe Lefebvre e sua mulher.

VINHOS

VIVAVINO – passei por diversas lojas (não necessariamente impressionantes) de vinhos convencionais, mas me encantei, mesmo, pela seleção e atendimento dessa pequena loja de vinhos naturais, que serve comida aos fins de semana. Ótima escolha de produtores e atendimento. Convém chegar cedo se a ideia é sentar num dos 8 ou 10 lugares da casa. Os sócios conhecem profundamente os produtores e seus vinhos.

[para imagens dos lugares citados, procure o destaque Fontainebleau, no meu instagram https://www.instagram.com/crisbeltrao/]